quinta-feira, 27 de maio de 2010

705


Aconteceu alguns dias depois que me mudei, quando a reforma do conjugado terminou. Eu tinha a plaquinha na mão. E só a olhava. Gravado no pequeno pedaço de metal, lia-se apenas: "705". Escolher o lugar exato da porta (ou do alisar), dois mínimos parafusos, nenhum esforço para atravessar a madeira, e lá estaria.
Não pude. Aquilo era solene demais. Exigia a presença de uma autoridade, de alguém importante. Liguei para o pai, que já nesta época (2010), sabia atender uma chamada no telefone celular.

Comprar a plaquinha foi curioso. Tive a sensação de que não iria esquecer aquilo. Pelo visto, não esqueci. Mesmo assim, não me parece que se faça bem confiar em lembranças ao toque de nossa consciência.
Na loja da Rua Buenos Aires: - Vocês tem aquelas plaquinhas com numeração para colocar em portas, portões, essas coisas?
- De que número você precisa?
- 705.
- Deixa eu ver...
A caixinha de madeira, bem à mão do vendedor, parecia esquecida. Nela, plaquinhas com diversos números inscritos; algumas plaquinhas eram, na verdade, algarismos arábicos isolados, para serem adquiridos em conjunto e formar o número desejado pelo comprador. "Muitas casas dentro desta caixinha", pensei. O vendedor a vasculhou, vi aparecerem o 301, o 107, o 603, 701 e... 705! Foi logo na primeira loja que encontrei. Não esperava que fosse tão fácil.

Meu pai chegou. Era uma manhã de sábado. Já tinha me empenhado para arruinar o que pudesse haver de protocolar naquela cerimônia, tinha bebido algumas cervejas e o esperava ansioso, chave de fenda na mão, para terminar aquilo tudo. Ou começar...
Continuamos com as cervejas. Sem cerimônia.
Depois de um tempo, ele subiu na escada, com a agilidade que não era a minha, que não era a dele com seus 25 anos. Equilibrou-se para apertar os parafusos, afixou a peça. Sacramentou: " LAR".
Quem passa hoje pelo estreito e imundo corredor, lê numa das portas: "912". O vendedor embrulhou a plaquinha errada. Não existe o apartamento 912 no meu prédio. Não existe nem o nono andar. Não existia...

Ponderações

Voltar para casa é como ouvir música antiga.

Coisas estranhas #02