quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

De Regresso ao Exílio


À beira do Tejo, sento-me. À espera de que este novembro se faça janeiro, quando posso regressar à casa. Tampouco é isso que importa, todavia. Desatei o nó. Vivo pronto para viver, embora sinta ainda o peso da cruz. Bebi vinho (estou bebendo!). Dos mais caros, em copos baratos. Dos mais caros, em copos caros. Dos mais caros, em copos comuns. Bebi vinho, dos mais baratos (estou bebendo, o mais barato), em copo barato, em caneca, em copo de plástico. Fui barato. Muito barato, amoral. Fui ao máximo, traguei vida, estourando o peito, o estômago, o fígado, a pele, os olhos, a mente. Experimentei o cansaço. Caminhei, cansei. Sentei-me, segui caminhando, mais algumas horas. Experimentei os pés clamarem por piedade. Piedade. Faria mais, outra vez. Faria pior.
Embriaguei-me, incontáveis vezes. Rezei, incontáveis vezes, por acordar dali a dois dias. Entoxiquei-me. Matei-me, um pouco mais. Vivi, muito mais.
Amei. A todas elas. Descobri, fingi e aprendi beleza. Compreendi beleza. Respeitei. Odiei, repugnei um gesto. Amei, tanto o ódio quanto o repúdio. Lutaria por isto, realmente lutaria. Há outras coisas por que sofro e que acredito que deveria tentar lutar, mas não luto. Lutaria pelos meus pequeninos amores, covardemente. Uma grande covardia lutar pelo que está aí de melhor, defender o clímax da vida. Egoísmo. Sou um grande egoísta. Um enorme egoísta. Só penso em mim. Acontece que já é o bastante. Não tenho filhos ainda.
Vejo agora o que se passou: uma troca. Perderia estes anos, mais tarde, engolido inteiramente por este modelo que quando não os arranca por inteiro, levam, dos cabelos, ao menos a cor. Ganharia, em meu rosto, as marcas que agora serão deixadas pela fumaça, por noites mal-dormidas. Acabaria surdo, possivelmente em uma reação inconsciente, no intuito desesperado de não ouvir tanta besteira. Acabarei surdo, por ter escutado demasiadamente uma canção que me hipnotiza, me arrasa, me encanta, me humilha. Ouvi canções, guitarras, percussões, flautas. Deliciei-me.
Comi bem, muito, exageradamente. Comi pouco, emagreci. Voltei a comer bem, e então comi. Estive a mastigar um bom pedaço de carne com a devoção de um beato. Deleitei-me. Admirei(-me). Contemplei. Espreguicei-me. Redimi-me. Encantei-me. Encantado estou.
Disto tudo, não tente entender palavra. Não intento dizer-te algo. Escreva teu próprio texto. Estou vivo.

Lisboa, 24 de novembro de 2005.





sábado, 5 de dezembro de 2009

lâmpada do bem tropicale


Quando sinto alguma coisa
Que nem bem sei dizer o quê
Tudo se reveste de um incômodo grosso

E os planos métodos típicos
Parecem bem mais intangíveis
E tolos.

Agitado, inquieto, apressado
Resolvo tudo guiado por nada
E a corrente dos cotidianos objetos gestos oculta
a razão de tamanha desordem

Até que um olhar ao céu opaco
Da cidade explica tudo, amarelamente:

Lua cheia, que fica branca
No alto do céu, feito lâmpada
Do bem tropical

Feira moderna





"Bangla". Central Park, Nova Iorque - Agosto de 2009

Armazéns, vendinhas, feiras livres, mercados.
Comerciantes, mercadores, vendedores, feirantes, negociantes, traficantes.
Cada lugar tem a sua Lapa.

sábado, 28 de novembro de 2009

Cores


Nesses dias quentes
tenho andado tão feliz
por viver em uma terra de gente
de pele tão morena

Tão bonitas as morenas peles
morenas bonitas peles

uma sensação de que tudo
deságua mesmo é em fevereiro
nada se resolve, mas é alívio
E transe

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Trancrições noturnas #05


(...) "Ah, it was a fine night, a warm night, a wine-drinking night, a moony night, and a night to hug your girl and talk and spit and be heavengoing. This we did. She was drinking little fool and kept up with me and passed me and went right on talking till midnight. We never budged from those crates. Occasionally bums passed, Mexican mothers passed with children, and the prowl car came by and the cop got out to leak, but most of the time we were alone and mixing up our souls ever more and ever more till it would be terribly hard to say good-by. At midnight we got up and goofed toward the highway."

Trecho de On the Road (Jack Kerouac)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009



Chego, entro e me deito e peço para tudo se acalmar. Vejo o céu da janela depois de abrir a cortina. Tudo parece caótico e o céu está cheio de nuvens escuras que se movem rapidamente, nuvens carregadas que, por um breve instante, consigo comparar ao meu estado de espírito. Peço para tudo parar. Tenho vontade de ficar deitado, quieto, mas estou inquieto e corro para anotar essas impressões que passam rápido como as nuvens. Fotografo o céu para compará-lo, depois, com o texto que vou produzir, em mais uma analogia. O texto, supostamente, deveria expressar meu estado de espírito. Não se trata simplesmente de um texto: desde o início tinha em mente escrever uma carta para você, apesar de achar a ideia um pouco esquisita. Muitas ideias estão passando pela minha cabeça. Isso sempre acontece, especialmente quando tenho um dia cheio de coisas cujos sentidos não significam nada para mim. Não se trata de não compreender o sentido das coisas cotidianas, dos assuntos de trabalho, dos objetivos da existência material, de manter a casa, o corpo, a vida em ordem. Diria que consigo aplicar um sentido razoável, bastante claro, a tudo isso. Passa, na verdade, é que sinto - bem nitidamente, muitas vezes - que este sentido não me significa nada. Resolvo, por um motivo que não é evidente para mim, por para tocar uma coletânea do Caetano (que contém a canção abaixo. (O disco não é destacado ou famoso em sua obra, tampouco a canção.) Soa perfeito. É bem o que queria ouvir e faço nova analogia: da canção com meu estado de espírito. As coisas continuam passando freneticamente pela minha cabeça, os temas são muito variados, são mundanos e metafísicos. Nunca consigo conviver bem quando isso acontece. É angustiante. (Aqui - nesta parte do texto - tinha tentado dar exemplos dos pensamentos, das ideias e dos temas que vem à mente em convulsão, mas não parece nada próximo de como sinto realmente. Assim, incapaz de descrever isto, revoguei a ideia e apaguei os exemplos.) Umas coisas que cogito é fumar um pouco para relaxar. Não faço, deixo para depois. Tento me aliviar batendo nas teclinhas e vendo letrinhas surgirem na tela. É bem menos eficaz que o Caetano. A descrição que faço agora não condiz cronologicamente com os fatos.
Chego, entro e me deito e peço para tudo se acalmar.
É claro que não começo a escrever de imediato, distraio-me com outras tarefas pouco importantes, sentado ao computador. Aos poucos, a necessidade de anotar impressões e a aflição esmaecem bastante. Mas voltam logo quando começo a escrever. A verdade é que estou bem decidido a elaborar um texto sobre isso - um texto que é mais uma vontade mandar uma carta, bem mais do que uma vontade de ouvir uma música do Caetano. Uma vontade de pedir silêncio ao mundo para que eu possa mandar uma carta e não pensar em mais nada: finalmente para conseguir conceber a linda ideia de entrar no espaço dessa carta - um espaço que vejo branco, limpo, claro, silencioso, só com as pautas e com as linhas escritas - para te esperar. Te esperar, esperar dentro da carta.





Noite de hotel

Caetano Veloso

Composição: Caetano Veloso

Noite de hotel
A antena parabólica só capta videoclips
Diluição em água poluída
(E a poluição é química e não orgânica)
Do sangue do poeta
Cantilena diabólica, mímica pateta

Noite de hotel
E a presença satânica é a de um diabo morto
Em que não reconheço o anjo torto de Carlos
Nem o outro
Só fúria e alegria
Pra quem titia Jagger pedia simpatia

Noite de hotel
Ódio a Graham Bell e à telefonia
(Chamada transatlântica)
Não sei o que dizer
A essa mulher potente e iluminada
Que sabe me explicar perfeitamente
E não me entende
E não me entende nada

Noite de hotel
Estou a zero, sempre o grande otário
E nunca o ato mero de compor uma canção
Pra mim foi tão desesperadamente necessário

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Os meninos


Luís Castro chegou em casa e disse:
- Toma lá, meninos. Uma poesia para você, uma para você, e outra para você. Não coma tudo antes do jantar...
Os meninos espiavam com os mesmos olhinhos inteligentes de quando seu pai chegara com o grande quadriciclo elétrico, na semana passada - com os olhinhos inteligentes de sempre. Seus nomes são Guilherme, Caio e Richard, do mais velho para o mais pequeno, respectivamente, ou, como costuma ser natural na infância, do maior ao menor. Eles formam uma escadinha, quando ficam lado a lado.
O quadriciclo elétrico fora dado a Castro por uma moradora do prédio onde ele trabalha. O brinquedo, no entanto, está sem as baterias que o torna um pequenino automóvel e, por enquanto, até que o pai possa comprá-las, os meninos vão usá-lo é pedalando ou empurrando mesmo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Mero devaneio sobre figuras públicas e funções sociais





Barack Obama está para a política como Denzel Washington está para o cinema.









Martin Luther King Jr. está para a política como Jimi Hendrix está para a música.



terça-feira, 6 de outubro de 2009

Um gênio lilás e amarelo





Vi um gênio lilás e amarelo. Diante da cena, eram ilimitados adjetivos para definir o que presenciava - vendo, ouvindo e sentindo. Mas um homem de cabelos grisalhos recebia, vinda de cima, uma forte iluminação da cor lilás; pela frente, iluminando sua camisa desbotada e refletindo nos óculos de grau, vinha uma luz amarela. Era um homem lilás e amarelo, que cantava.

Alguém com a rara possibilidade pessoal de se contaminar. Ele se contamina com o que vê, ouve e sente, e atravessa tudo de poesia (nem sempre bela, mas eloqüente, como uma limitação). Uma profusão de idéias, apelos, vigor e carinho. De repente, um homem que se descobre velho, solteiro, frágil e pleno se renova, quase adolescente, derramando corajosamente na arena o plástico do absurdo. Tem sido assim há muitos anos: ele capitaliza conceitos, debates, traumas, conflitos desta sociedade que se olha pouco. O ato de tentar manter-se permanentemente jovem é pura coragem. "Você nem vai me reconhecer quando eu passar por você". Ele pede lágrimas e carinho.

Alguém que tem suas páginas com todos os desenhos - renascentistas, gravuras, aquarelas, grafites, rabiscos, animados - qual um velho caderno. Impressionante são as novas páginas, imaculadamente brancas, que brotam no final deste livro moderno e vivo. Ele dançava. Movia os pés como se por debaixo deles passasse a esteira da vida mortal, bela e trágica. Ele caminha sobre ela com leveza e sensibilidade. E deixa ter suas páginas pintadas, desenhadas, rabiscadas, pichadas e coloridas. Ele vê mais. Ouve mais. Sente mais.

Alguém que se despoja mas, estranhamente, não se exila do real. Impossivelmente real. Constrói musas híbridas vivas de carne, músculos e mucosa roxa; deusas urbanas que fazem o céu desabar sobre nós. Expõe os ossos da fraqueza nossa. Declara amor. Estranhamente machista. Impossivelmente real. Feminista. Paradoxal. Enfrenta o ridículo à parte dos olhares críticos e em função dele mesmo e do outro e de nós.


Alguém de quem o olhar é essencialmente lírico. Ele ocupa-se de tudo que desmente esse país. Ele é sonhador. Magro, vaidoso e funkeiro. Panegírico. Imenso, estético e rápido. Desolador e complexo. Patético, tosco e esquisito. Carismático. Resplandecente, nítido e real. Não se arrepende. Ele é como o vento. Vi, estava lá. Um gênio. Era lilás, amarelo e tudo mais...


Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2006.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Espere por mim, senhor Tempo


A crise econômica houve uma hora em que para mim foi isso: pessoas nos umbrais, conversando. Desperdiçando tempo. Haveria bancarrota geral, a economia definhando, lojas às moscas, escritórios ociosos, maré seca: pessoas conversando nos umbrais. Olhando gente passar, do jeito que os porteiros ficam. Olhando gente passar sob pilotis. Seria a hora de olhar os outros, convivendo, por falta de pressa, por falta do que fazer. Era como via quando era criança.

Morava num lugar úmido. Quando não fazia sol, ficava muito frio, os pés ficavam gelados. A luz vinha, detrás do morro, e entrava pela janela do quarto da minha irmã, de manhã. À tarde, a luz do sol batia no meu quarto, batia no quarto dos meus pais, batia na parede do banheiro azul. E esquentava o sabonete. Esquentava a água do cano, que demorava muito a sair fria da ducha.

Passava muito tempo sem fazer nada. Mas não é bom ficar sem fazer nada num lugar úmido, que gela os pés. Eu era mandado descer, tomar sol, que aparecia atrás do morro, filtrada entre os galhos das árvores lá no alto, e batia nas minhas canelas. Como gostava de tomar sol, gostava também de ser mandado descer. Os raios de sol esquentavam os meus pés, que ficavam sempre muito frios dentro de casa.

Ficava na rua sem fazer nada. Começava a olhar meus pés, calçados em chinelos, e olhava bem para o chão, iluminado pelos raios de sol, para depois olhar para frente, para a garagem de três portões, para a portaria social revestida de mármore branco. Passei muito tempo lá, sem fazer nada.

Hoje não fico mais sem fazer nada. Mas passo todo o tempo querendo não fazer nada. Pior é que gostaria que as pessoas também ficassem sem fazer nada (como acho que ficam às vezes no domingo de manhã, sob o pilotis). Sem pressa, talvez com um pouco de sono, deixando o tempo passar. Pessoas conversando nos umbrais.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

As cidades: inventário





Barra Mansa. Rio de Janeiro. Volta Redonda. Bananal. São Paulo. Salvador. Maricá. Resende. Aparecida do Norte. Cabo frio. Angra dos Reis. Santos. Maringá. Londres. Gramado. Rio Claro. Rio Preto. Saquarema. Campos do Jordão. Paraty. Belfast. Feira de Santana. Niterói. Florianópolis. Ciudad del Este. Petrópolis. Campos do Jordão. Itatiaia. Ouro Preto. Angra dos Reis. Guarapari. Berlim. Nova Iorque. Arraial do Cabo. Lima Duarte. Porto Alegre. Blumenau. Tigre. Além-Paraíba. Mangaratiba. Lençóis. Praga. Amityville. Curitiba. Teresópolis. Nilópolis. Valença. Armação dos Búzios. Governador Valadares. Quatis. Porto Real. Rio das Flores. Canela. Bento Gonçalves. Palmeiras. Praia do Forte. Jacuípe. Rio das Ostras. Conceição do Ibitipoca. Buenos Aires. Foz do Iguaçu. Belo Horizonte. Granada. Amsterdam. Piraí. Araruama. Nova Iguaçu. Juiz de Fora. Vitória. Queluz. Caxias do Sul. Dublin. Veneza. São Vicente. São Pedro d'Aldeia. Madri. Miraí. Barra do Piraí. Seropédica. Paris. Puerto Iguazú. Florença. Bolonha. Roma. Bangu. Itaboraí. Queimados. São Gonçalo. Beauvais. Arrozal. Pinheiral. Iguaba Grande. Barcelona. São Sebastião do Rio de Janeiro.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Muitos mestres, um só Guru



Adorno, Althusser, Anderson, Appadurai, Arrighi, Bachelard, Badiou, Bakhtin, Barthes, Bataille, Baudrillard, Bauman, Benjamin, Bergson, Bhabha, Bourdieu, Bush (o Vannevar), Castells, Castoriadis, Chion, Chomsky, DeCerteau, Debord, Deleuze, Derrida, Dewey, Engelbart, Flusser, Foucault, Freud, Guattari, Hardt & Negri, Harvey, Heidegger, Huyssen, Illich, Jameson, Kellner, Kracauer, Kristeva, Lacan, Laclau, Langton, Latour, Loos, Lyotard, Makavejev, Mandel, Manovitch, Marcuse, Marx, Merleau-Ponty, Mussolini (!), Negri, Nietzsche, Pasolini, Pynchon, Rancière, Ricoeur, Rorty, Said, Sartre, Sloterdijk, Trotsky, Vertov, Virilio, Wagner, Wallerstein, Williams (o Raymond) e Žižek (com e sem chapeuzinho).

"O verdadeiro dread é este: não lavo, não penteio, não tiro moda. Vai tomar no cu tranquilo, rapaziada da biblioteca"! "Away"!

sábado, 29 de agosto de 2009

Cartola, de fato



Cartola existiu?

Esta é pergunta me ocorreu há alguns dias quando pus o primeiro disco desse músico para tocar. Era alta madrugada, o nível de abstração ia elevado, fazia tempo que não escutava aquelas músicas, me vi consternado.

Veio um palpite de que ele talvez não tenha existido, talvez não tenha nascido, nem morrido. Talvez não haja data de nascimento ou de óbito, porque Cartola não existiu. Não de alguma maneira convencional, pelo menos.

A sua música carrega tamanhas doses de lirismo, candura e intensidade, que prefiro imaginar que possa ter sido feita por um anjo, tão arraigado quanto alheio às coisas miúdas do nosso jardim de dias.

Os fatos curiosos de sua trajetória de vida só aumentam o mistério sobre a possibilidade sociológica, antropológica, estética, política ou mística do acontecimento deste artista. Cartola, músico, compositor, sambista, poeta, negro, pobre, favelado, anjo – defini-lo é problema das ciências.

Cartola é música. Beleza em dolorosa harmonia.

sábado, 25 de julho de 2009

Na parede da memória




Belchior.

É a primeira vez que este nome aparece aqui. Talvez Belchior esteja bem guardado. Há algumas coisas que mantemos bem guardadas.

Outro dia, em casa numa reunião de amigos, um cara falou do Belchior. Senti, primeiro, como se ele tivesse tomado um atalho e conquistado subitamente a minha simpatia. Pensei assim: se este cara cita o Belchior numa roda de amigos, ele deve ser legal. Uma vez, conhecemos um cara que disse ter citado um dos belos versos da canção "A Palo Seco" na epígrafe de sua tese de doutorado e passamos a chamá-lo de Deus.

Mas o que mais senti mesmo foi como se ele tivesse entrado num quarto que fica escondido dentro do meu peito, e visto uma coisa querida que deixo por lá.


Eu gosto de Belchior. O Fusca que tivemos Pedro, Rômulo e eu foi batizado Belchior. O Fusca era amarelo, brilhava como o sol. Era bonito. O cara citou do Belchior uma música que eu não conhecia, intitulada “Ame seu vizinho mesmo que ele seja jovem”.

Ao ouvir o nome da música, senti que talvez eu mesmo tenha reencontrado o quarto escondido, e me sentido surpreso com o que encontrara lá. Depois da surpresa, a alegria de reconhecer os motivos, espalhados pelo chão, de gostar daquilo que gostava já.

Não encontrei a letra da música para colocar aqui.

Van Gogh em seu lençol






Quero ver o Vermeer. Ver o Giacometti. Rembrandt. Chirico. Warhol. Pollock. Hopper. Picasso. Monet. Rubens. Dalí. Não verei nenhum deles: verei suas almas em molduras, telas, estátuas e luz. E verei as minhas almas. Van Gogh lá, eu cá, olhando almas e lençóis.











Citações involuntárias #01


"O princípio do cinema: ir até à luz e apontá-la para nossa noite".

Jean-Luc Godard

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Transcrições Noturnas #04


No dia seguinte ao da reunião, a febre deu mais um pequeno salto. Chegou até os jornais, se bem que de uma forma benigna, já que se contentaram em fazer algumas alusões. No outro dia, em todo caso, Rieux podia ler pequenos cartazes brancos que a Prefeitura mandara rapidamente colar nos lugares mais discretos da cidade. Era difícil tirar desses cartazes a prova de que as autoridades encaravam a situação de frente. As medidas não eram draconianas e parecia ter-se sacrificado muito ao desejo de não inquietar a opinião pública. O decreto dizia, na verdade, que tinham aparecido na comuna de Oran alguns casos de uma febre perniciosa que não se podia ainda caracterizar como contagiosa. Esse casos não eram bastante característicos para serem realmente inquietantes e não havia dúvida de que a população saberia manter o sangue-frio. Contudo, e com um espírito de prudência que poderia ser compreendido por todos, o prefeito tomava algumas medidas preventivas. Compreendidas e aplicadas como deviam sê-lo, essas medidas eram de natureza a debelar qualquer ameaça de epidemia. Consequentemente, o prefeito não duvidava por um só instante de que os seus administrados dariam a mais dedicada colaboração ao seu esforço pessoal.

Trecho de A Peste. Albert Camus.

Cena de cinema


quinta-feira, 16 de julho de 2009

Dois nomes

Fenêtre
Être


Janela
Ela





Pour Mlle. Duarte

biologia para vestibular

pneumococcia
substantivo feminino
Rubrica: pneumologia.
infecção devida ao pneumococo ou Streptococcus pneumoniae, bactéria Gram-positiva, esp. virulenta e patogênica


Streptococcus pneumoniae

A Rua do Russel


A Rua do Russel fica na Glória.
Quando resolvi falar sobre este lugar, pensei até em pesquisar o motivo pelo qual a rua ganhou este nome. Para isso, naturalmente, me serviria do Google num ágil rua+do+russel+rio+de+janeiro+história, que provavelmente me retornaria uma história convincente, com a que me contentaria em publicar. Para quem se interessar, segue um link útil: Google.
Decidi usar somente as informações que já possuía sobre a Rua do Russel, entre as quais a primeira, escrita acima, sobre o bairro onde se situa. Não sei ao certo onde ela começa: se na esquina da praça que acompanha o seu contorno e a Avenida Beira Mar, ou se todo o trajeto que vai do Hotel Glória, passando pelo velho prédio da Manchete, até o Hotel Novo Mundo, já próximo do Museu da República, também é Rua do Russel. Gosto mais desta segunda opção, pois todo o trecho é bonito.
Acho que sei onde ela termina, contudo: junto aos muros do Outeiro da Glória, lançando sua melancolia no caos de um cruzamento perto do Largo da Glória. O Outeiro prescinde de comentários. Só de olhar aquela igreja branca, seus edifícios anexos, árvores e paredões de pedra, já dá vontade de subir lá.
Uma vez eu vi o Outeiro de um ângulo muito legal. Mas numa situação inusitada: o padrasto de uma de minhas primeiras namoradas era dono de motel. Ele era de família espanhola que tinha a tradição no ramo das atividades “moteleiras”. Um belo dia, fui com minha namorada visitar o trabalho de seu padrasto. Ele nos mostrou as suítes simples, as suítes temáticas, a suíte principal que, além de mini-system e piscina, tinha teto retrátil. Eu vi funcionar o mecanismo do teto retrátil, foi bacana. Hoje entendo porque conseguimos visitar a maioria dos quartos na mesma hora. Era no final de um dia de semana, o motel ainda não começara a receber seus visitantes. Passamos ao telhado do prédio (lá dava para ver o teto retrátil de cima). Era uma bela vista do Outeiro, e de toda Marina da Glória e do aterro, naquele entardecer.
Acho que naquela época eu já gostava da Rua do Russel. Reparava na balaustrada de defronte ao Hotel Glória e ficava imaginando quando o mar ia até ali. Ficava imaginando o passeio sob as luzes dos postes em forma de mulher.
Construíram um museu, com cinema e tudo, na praça que é ladeada internamente pela Rua do Russel. Lá é cheio de estátuas, tem uma estátua gigante de São Sebastião, um busto gigante do Getúlio Vargas, em memória de quem foi erguido o museu, e um ou outro busto que não é gigante.



Na Rua do Russel, tem um plano inclinado, para levar ao Outeiro. Ao lado do plano inclinado, fica um dos prédios de apartamentos mais bonitos do Rio.
Parece que logo ali, fica a redação da revista Piauí. Eu nunca li a Piauí. Escuto seus anúncios engraçadinhos no rádio. Uma vez, na casa de alguém, estive com um exemplar nas mãos. Menos do que o formato estranho da publicação, acho não consegui ler mesmo é porque não gosto de ler revistas. As revistas me trazem a impressão de estar lendo alguma coisa velha, já defasada, e, portanto, inútil. Mesmo quando se trata da última edição, sinto que é desperdício de tempo ler aquilo, uma vez que, na semana ou mês seguinte, haverá a mesma quantidade de artigos, notícias e reportagens para se ler outra vez.
Um raciocínio que não faz nenhum sentido, porque perco muito mais tempo lendo romances que foram escritos há décadas, há mais um século, do que perco com as revistas, e não considero isso desperdício de tempo. Se fosse um raciocínio, não faria nenhum sentido. Mas não é raciocínio.
Na Rua do Russel, tem um bucólico estúdio de fotografia que é um dos poucos do Rio que ainda revelam filmes preto e branco. O dono do lugar é o Milán, um velho com jeito de russo, a quem eu nunca vi sem um cigarro na mão. Também não me lembro de ter estado lá sem que o ouvisse falar algo a respeito de bebidas alcoólicas. Outro dia, ofereci para deixar um sinal pelo serviço, ao que ele me respondeu: “se quiser deixar melhor, que eu já bebo um uísque”. Hoje, brincou com um cliente com quem conversava, antes de me atender: “eu estava crente que tu ia pagar uma cerveja, porra!” Não é fácil escutar o que ele diz, pois tem uma voz rouca, bem fraquinha, conseqüência provável da ação dos cigarros e das bebidas alcoólicas em seu organismo.
Então me atendeu. Anotou o preço da revelação de um rolo no envelope pardo e viu que eu estendia uma nota de R$20. Riscou o preço e escreveu “pago”. Foi quando vi que o valor era menor do que tinha pago da última vez, e lembrei de pedir para colocarem os negativos revelados num plástico para arquivar, pelo que eles cobram um valor a mais. Ele então disse:
- Você quer com print file?
- Sim. Quanto fica?
Ele já escrevia no envelope R$2 a mais, “pago”. E eu perguntei:
- Com print file é mais R$2?
- Acho que é mais de R$2, mas que se foda.
E, meio impaciente, me cobrou R$2.
Fiquei pensando que Milán é um bom empresário. Ele tem os clientes certos. Ele não dá a mínima para bobagens hipócritas politicamente corretas, fuma dentro de seu estabelecimento, fala palavrões. Não se importa com os mandamentos de uma ou de outra doutrina de gestão de negócios ou de estratégia de marketing que pretensamente se preocupa com as pessoas, “que coloca o cliente em primeiro lugar”. Doutrinas essas que simplesmente tentam achar um meio de vender alguma coisa a alguém, e que contribuem grandemente para transformar o mundo num lugar mais escroto.
Ele me cobrou a menos, eu teria pago a mais. O cliente do Milán saiu satisfeito com o atendimento, deixando para trás o estúdio fotográfico da Rua do Russel, e logo sua praça, as estátuas, o plano inclinado, o prédio de apartamentos, o prédio da redação da revista, o Outeiro com seus paredões de pedra, naquela tarde de sol entre nuvens.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Transcrições noturnas #178






O Velho está olhando os prédios, muito compenetrado, encostado na grade de ferro que cerca o antigo Buraco do Lume, que depois de tapado virou um gramado com poucas árvores, onde moram alguns mendigos.
“Teu arroz já chegou”, diz Augusto.
“Está vendo aquela sacada ali, daquele sobrado pintado de azul? As três janelas do primeiro andar? Foi naquela janela à nossa direita que eu a vi pela primeira vez, debruçada no balcão, os cotovelos apoiados numa almofadinha com bordados vermelhos.”
“O arroz já está na mesa. Ele tem que ser comido logo que sai do fogo.”
Augusto puxa o Velho pelo braço e entram no restaurante.
“Ela mancava de uma perna. Isso para mim não tinha importância. Mas para ela era importante.”
“É sempre assim”, diz Kelly.
“Você tem razão”, diz o Velho.
“Come o arroz, vai ficar frio.”
“As mulheres de vida airada são detentoras de uma sinuosa sabedoria. Você me deu um momentâneo conforto ao mencionar a inexorabilidade das coisas”, diz o Velho.
“Obrigada”, diz Kelly.
“Come o arroz, vai ficar frio.”
“Vai ser tudo derrubado”, diz o Velho.
“Antigamente era melhor?”, pergunta Augusto.
“Era.”
“Por quê?”
“Antigamente tinha menos gente e quase não havia automóveis.”
“Os cavalos, enchendo as ruas de bosta, deviam ser considerados uma praga igual aos carros de hoje”, diz Augusto.
“E as pessoas, antigamente, eram menos estúpidas”, continua o Velho, com um olhar triste, “e tinham menos pressa.”
“O pessoal da antiga era mais inocente”, diz Kelly.
“Era mais esperançoso. A esperança é uma espécie de libertação”, diz o Velho.




Trecho de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In: Romance Negro e Outras Histórias. Rubem Fonseca.



sábado, 11 de julho de 2009

penso


penso na ciranda do dia-a-dia penso na poesia calma das linhas retas do mar penso no terror e na dor penso na beleza de minh’alma penso nas bonitas palavras penso na corrente que prende penso na água que é fresca e corrente penso em correnteza penso em merthiolate penso no que há penso inutilmente penso na garrafa plástica penso em felicidade penso infelicidade penso em solavancos mórbidos e em sonhos doces penso em olhos grandes penso em cuecas samba-canção penso no futuro do rádio de válvulas penso na esquina do velho rádio velho de válvulas penso em caboclo penso em sujeito e predicado penso em texto justificado penso em justificativa penso entre fones de ouvido penso em risada de homem limpando a piscina penso em toda gente se favorecendo e em árvore florescendo penso em gosto de amido e em laboratório de química penso repetidamente penso em figurinhas amassadas penso no México penso que não estive lá penso que sem ter estado não posso pensar penso em estado paralelo penso em redondeza penso em miolo e em sabiá-canção penso em canetas rabiscando a tela penso sutilmente em sutileza penso em gelatina pura penso em mandarim e penso em português pois em mandarim não penso em poesia concreta penso porque penso em abstrato denso penso

Nara Leão não é só bossa-nova



"Meu nome é Nara Monteiro Leão. Nasci em Vitória, mas sempre vivi em Copacabana. Não acho que só porque vivo em Copacabana, só possa cantar determinado estilo de música, mas é mais ou menos isso: quero cantar qualquer tipo de música que ajude a gente a ser mais brasileiro, que faça todo mundo ser mais livre, que ensine a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado".


Extraído do disco Show Opinião, de Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti

sábado, 4 de julho de 2009

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Azul e branco

Concha e cavalo-marinho
Mote de Pedro Nava


I


Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio
Do espaço criado.

Concha e cavalo-marinho.

O mar vos deu em corola
O céu vos imantou
Mas a luz refez o equilíbrio.

Concha e cavalo-marinho.

Vênus anadiômena
Multípede e alada
Os seios azuis
Dando leite à tarde
Viu-vos Eupalinos
No espelho convexo
Da gota que o orvalho
Escorreu da noite
Nos lábios da aurora.

Concha e cavalo-marinho.

Pálpebras cerradas
Ao poder violeta
Sombras projetadas
Em mansuetude
Sublime colóquio
Da forma com a eternidade.

Concha e cavalo-marinho.



II


Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.

Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.

Concha e cavalo-marinho.

Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos
Que o raio de luz
Cortando transforma
Em claves de sol
E o amor do infinito
Retifica em hastes
Antenas paralelas
Propícias à eterna
Incursão da música.

Concha e cavalo-marinho.



III


Azul... Azul...

Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco

Concha...

e cavalo-marinho.


Vinícius de Moraes








A colaboração do texto foi de Pedro David, numa manhã de sábado.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

domingo, 28 de junho de 2009

Sobre a morte do Michael Jackson


Michael Jackson não está mais entre nós. Curioso afirmar isto sobre alguém que nunca esteve entre a absoluta maioria das pessoas que o conheciam, muito embora fosse conhecido de praticamente todos.
Senti duas coisas a respeito do fato: a primeira, é que, no dia seguinte, as pessoas deveriam ter dançado. De manhã, no trabalho, no ônibus, sozinhas ou em público, poderiam ter aproveitado e soltado uma dançadinha a la Michael Jackson. Afinal, isso era a coisa mais legal que esse cara fazia.
A segunda: toda esta história de superexposição, supermidiatização, espetacularização extrema da existência de alguém vive um interessante capítulo, que dificilmente será o derradeiro, embora tenha sido o último da vida de Michael Jackson: a superrepetição de uma mesma informação elevada a todas as potências. As execuções da mesma peça informativa - uma imagem, uma música, um discurso - estão acontecendo aos milhões, a todo instante. A morte dele está, paradoxalmente, sendo onipresente.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Travessia


"Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a história acaba".



Atravessei. Foram alguns meses, amor e ódio, muitos espinhos, dureza, flores, brisas, sóis e chuvas. Grande sertão: veredas é. A arte acontece em forma de prosa: caminhei léguas pelos Gerais, comi nacos de carne seca, mastiguei punhados de farinha e rapadura, cavalguei, entrei em batalhas mortais sob fogo de rifles e combléns. À noite, à beira do fogo, o jagunço Riobaldo - Tatarana, Urutú-Branco - conta histórias de Quipes, Alaripe, Jõe Bexiguento, sobredito o "Alpercatas", Pacamã-de-Presas, Acauã, Fafafa e Paspe. Ele fala de Reinaldo, "Diadorim".

Desfecha sublime.

Na travessia, colhem-se flores:

"Moço: toda saudade é uma espécie de velhice".
"O amor, já de si, é algum arrependimento".
"Ficar calado é que é falar nos mortos".
"Tempo é a vida da morte: imperfeição".


Transcrições Noturnas #204



"Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses - Davidão era o nome dele. Vai, um dia, dessas coisas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas em lei de caborje - invisível no sobrenatural - chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, O Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...

Apreciei demais esta continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem - deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e visse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso..."


Grande sertão: veredas. João Guimarães Rosa



ca.bor.je sm 1 Feitiçaria, feitiço, mandinga. 2 Força oculta protetora do valente. 3 Pacto com o diabo. 4 Saquinho que encerra uma oração escrita e se pendura ao pescoço. 5 gír Azar. 6 Peixe de pântano. 7 pop (Nordeste) Mulher da vida.

as tantas partes



Epílogo:

E quando se lançou portão afora, teve a impressão de haver menos gente na rua, para o que esperava naquele feriado doce de sua mãe. Mas, notando bem, não era a quantidade de pessoas o que se desenhava atípico, e sim o ritmo delas, e também das demais coisas, que parecia lento, calmo. A luz lhes incidia alheia, e delas saía um silêncio.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

autoretrato de casa


as tantas partes


Parte 3:


Linha natural que rege o corpo
Em suas todas partes
Se tem as vidas delas sempre
Dão a mim a vida
A cada vez
Que as põe sentadas na cama
Nuas

Belas com seus cabelos sobre os pescoços
E seus pescoços sob seus cabelos soltos

Vidas, magras, cinturas e
bocas cheias de dentes
Também mármores

Mármores das colunas
Colunas que bem não vejo
Pois bocas, cabelos, cinturas

E beijos

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Assum Preto

Luiz Gonzaga


Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor

Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió

Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá

Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.


as tantas partes

Parte 2:


Quando recebo outra vez o livro
Desconheço aquele que o havia ganho
Como desconheço aquele que o recebe de volta
E desconheço o próprio livro que ganhara,
Que lera,
Quiçá era o mesmo que emprestara
Ou este agora, devolvido, tomado de volta

Não reconheço o arco de tempo
Que me lançara ali

E, parado nas escadas do edifício vizinho
Vizinho ao edifício vizinho
Leio a primeira linha do primeiro parágrafo
O arco do tempo me faz novamente
E ao livro, ao que o ganhara,
Ao que o lera, ao que o emprestara,
Ao que novamente o recebia
E até ao edifício vizinho


Reconheço a todos

sexta-feira, 19 de junho de 2009

as tantas partes

Parte 1:


A vontade antiga de moço
A vontade de dezesseis anos
Não se sabe em parte se guardou
Ou mesmo se foi guardada em parte
Alguma, alguma parte

Nem como lida com o desejo o tempo
A lida do tempo
Pondo longe os desejos
À lida do tempo
Arando sonhos em pedaços

carol menina

Ela faz festa.
Um coco, um pé de sapato de couro e rosas, à Santa do Mar numa baía suja. Bobagem de beleza a ninguém representar. Minha vista suja de etnias e descredos é o através de onde se afixam as leituras no mosaico típico. Roubam-me as idéias e lá se vai o meu vigor ante o despir diabólico de um anjo belo. Ela também vê a sujeira e continua lisa, branca e doce radical. E o pé ferido vai para seu mosaico típico, diferente do meu. Ela é todas as meninas e todas as meninas seriam felizes com ela. Ela é menina. Nem sempre ondula feito elas, mas as guarda todas elas.
Um mundo de águas traz por terra as meninas do norte. E um país que eu e ela queremos costurar se parte em dialetos pobres. Ela não quer escrever e tem preguiça. Sem pudor e razão, teima. E ri-se. E volta. Bebe água no mundo de águas. Eu penso se ajudaria ser ela porque se ela guarda todas as meninas eu as entenderia melhor. Elas me confundiriam menos e talvez não fossem o que me parecem ser. Ela ganha poesias e mas não entende porque as outras meninas não as ganham. E ri-se.
No tempo em que os mendigos têm no olhar ainda mais convicção de sua dignidade, a cidade se contorce. E a gente, nós e toda a gente, mais nós do que a gente, passeamos. Mas ela não é melhor que as outras meninas e todas as meninas são meninas, são ela.

Ela é menina.

domingo, 14 de junho de 2009

Verões



Sentada, calou-se.

Buscou primeiro a imagem
De um tempo que lhe faltava
A imagem, para ela, bela,
De tudo que considerava pronto,
Construído, realizado.
Vasculhou sem calma e medo
O jardim de caminhadas em contentamento
E rasgou-se em tudo que quis, fez e tentou

Pôs fim ao trabalho de despedaçar a sorte,
Julgando ter sua própria sorte
O pior dos destinos
Refletiu-se opacamente
Em memória deste tempo,
Este tempo que não lhe pertencia mais.

Espalhou sobre as camas da lembrança
Todas as noites de prazeres cálidos,
Sentindo os odores do amor antigo.
E simplesmente não tocou nas mágoas
As olhou, viu a janela,
E deixou jogos, ardis, ressentimentos amiúde
Onde jaziam. Na poeira.

Posta do avesso, apanhou do chão
Os vestígios de algo que sonhou
E pôde somente atirá-los a um canto
No absurdo desespero, gracejou com o Fim.

Então,
Recolheu os estilhaços de quem um dia julgara ter sido
e saiu.

Era verão.



Março de 2007.

Performance

terça-feira, 9 de junho de 2009

Dziga Vertov

Synthesis

Não sabia, mas era aquela a centésima quadragésima mulher com quem estava saindo, e a quadragésima terceira com quem estava prestes a dormir. Vivia uma noite em que seu espírito discutira com sua consciência – tudo parecia impossível e aquela mulher era parte disso. Tinha os traços da moça que fora seu primeiro amor, aos dezessete anos. Mas mostrava também os traços de todas as outras que ele desejou – das que pôde ter ou não – e daquelas com as quais viveu instantes e construiu lembranças. Tinha a risada longínqua de uma loira suave com quem compartilhou solidão febril; as mãos pequenas de uma outra, de tal maneira que as mãos das moças de mãos grandes também podiam estar ali, naquelas pequenas.
Sorriu, sorriu muito, falando àquela mulher como se se dirigisse a todas as outras de suas memórias. Sentiu vontade e amarrotou as roupas dela contra as suas, terminando por também amarrotar os papéis onde se achavam escritas aquelas memórias. Contou de seus projetos pouco íntimos e incitava a si mesmo a se despojar da vaidade, embora estivesse atravessado pela impressão de não servir de nada falar dos planos – nem dos íntimos nem dos alheios, nem de suas suspeitas e tampouco de suas convicções.
20/10/2007
(Levemente inspirado no Amor nos Tempos do Cólera - linhas colombianas.)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

terça-feira, 21 de abril de 2009

Prenúncio














Não era um prenúncio de que algo viria a acontecer no mundo?

Repartições e metafísicas de chafariz





Caminhava pela Rua do Catete e resolveu dobrar à direita na Machado de Assis: vou andando pela praia, é melhor. Não era que as calçadas tomadas pelas esteiras dos camelôs o estivessem incomodando; era somente a luz lateral do sol das nove e meia que ele percebia nas entradas das lojas e edifícios, nos brinquedinhos à pilha importados da China e dos próprios chineses atrás do balcão das pastelarias.
Virou à direita e, enquanto caminhava pelo quarteirão até a praia, apenas um carro lhe cruzara o caminho. Ali não havia mais a luz amarela do sol, presa no topo dos prédios mais altos. Desviou de uma pequena poça de xixi, e aventou se quem a havia posto ali houvera sido um cachorro ou um mendigo, questionamento que logo cedeu lugar ao mês anterior, em que estava querendo pensar com calma desde a última terça.
Passava por uma verdadeira revolução: depois de sete anos como entregador da farmácia no turno da noite, conseguira convencer o gerente de que poderia ser balconista. Foram anos estudando as bulas dos medicamentos - as lia com incrível avidez e inusitado interesse. Já dominava muito mais da metade da lista de remédios vendidos e venerava, em especial, os nomes dos antibióticos. Havia passado longos momentos pensando no dia em que estaria atrás do balcão da loja, explicando à clientela: não, senhora, o mais indicado para casos de amigdalite não é amoxilina, é cefalexina.
Ainda não decidiu se irá vender remédios sem receita. As pessoas não entendem nada de remédio. Todo mundo dá palpites, mas não entendem realmente de remédios. Pode ser perigoso. Mas todo mundo vende; a maioria das entregas que ele mesmo fazia era de remédios de tarja vermelha - sem receita médica. Além do mais, o gerente não quer saber se tem ou não receita. Vai analisar caso a caso, é isso. Fato é que, desde que começara no novo cargo, há três semanas, vendera irrestritamente medicamentos para todos os clientes a quem atendera, inclusive os de tarja preta.
Chegou diante do portal do jardim do Museu da República. A entrada lateral, além do portal, que é conservado sempre assim, hoje também estava fechada e a guarita estava vazia. Parou bem diante do grande portão de ferro e olhou através da grade as pessoas que caminhavam nas aléias. Viu uma criança comendo pipoca, levemente embalada no balanço em que a tinham sentado, cujos olhos faziam menção de cerrarem-se e cujo rosto também insinuava um sorriso; e, no seu resumo, aquela pequenina figura era o próprio semblante da felicidade.
Ele não entendia a dinâmica responsável pelos fluxos de visitantes naquele parque, tampouco a relação que mantinham com os horários determinados para abertura dos portões do jardim. Sabe-se que o Palácio do Catete abre a entrada lateral do jardim na Praia do Flamengo nos dias de semana, das oito às dezoito horas, mas não se sabe se estes horários são os melhores. Quando se abria a entrada lateral na face do terreno voltada para a Praia do Flamengo, o parque se transformava em passagem para os transeuntes do bairro, que agora podiam escolher se iriam por uma das duas ruas adjacentes – Ferreira Viana ou Silveira Martins, ou por dentro do jardim. Se não estivesse trabalhando, fazendo as entregas na bicicleta, sempre escolhia o jardim: era melhor. Como o passeio da praia.
O tempo passou a ser percebido de maneira diferente desde que se mudou para o Rio de Janeiro; agravou-se a mudança com o emprego noturno. Em sete anos, era a segunda vez que caminhava pelas ruas do Catete numa manhã de sábado na condição de trabalhador diurno. Muito difícil se adaptar à nova vida. Agora podia compreender os jogadores de futebol quando disputavam partidas em outros países - sempre reclamando do fuso horário.
Mas não houve outro jeito, seu dia tinha chegado. Os passeios noturnos na bicicleta e as noites de vigília à porta da farmácia logo seriam lembrança distante. Naquele momento, porém, não percebeu que a cidade vivida assim de madrugadas fora a razão de sua existência e paixão nos últimos anos, a mais convincente para mantê-lo ali. Agora, haveria de aprender tudo outra vez.
O grande problema era saber o que fazer com os R$254,02 a mais que passaria a receber como balconista. Com o salário anterior, sobravam-lhe em média, depois de acertadas todas as despesas mensais, cerca de R$40,00, os quais nunca eram guardados. O primeiro pagamento, cuja data já se aproximava, era justo que fosse usado para comprar um colchão novo. Não dava mais para seguir dormindo no atual, um colchonete que se fosse gente seria a pessoa mais carinhosa do mundo, pois usava a espuma macia e o forro puído e áspero para envolver seu hóspede num abraço verdadeiramente intenso, morno, infernal.
Poderia também mandar para casa o dinheiro, ligar para mãe e dizer para ela comprar o conjunto estofado que anunciaram na televisão – sofás de dois e três lugares, verdes, bonitos, com encostos que vão até a altura da cabeça e braços redondos. Parece que inauguraram uma loja dessas em Santana. Se eles entregam em outra cidade, dá para comprar.
Estava à sombra das amendoeiras à beira dos campos de futebol, de onde podia sentir o cheiro de peixe frito do Lourival. Estava em jejum e sentiu-se tentado a comer, mas era ainda muito cedo para almoçar. Além do mais, não encontrou ninguém que conhecia em nenhum dos campos e também não queria mesmo saber de futebol àquela hora. Sentia-se um pouco irritado e saiu dali quando dois homens começaram a discutir por causa de uma bola saída pela lateral.
Caminhava agora pela sempre deserta calçada da Praia, do lado do Parque do Flamengo, sem saber que acabava escolhendo aquele lado da rua porque exatamente ali sopra uma brisa constante, muito leve, sempre na direção do rosto do transeunte, independentemente da direção em que se esteja a caminhar. Os homens continuaram os insultos, ouvidos cada vez mais ao longe.
Chegou diante do castelinho do Flamengo e resolveu atravessar a rua para entrar pela Dois de Dezembro. Resolvera passar diante daquele prédio novo que haviam construído lá – parece que é um museu. Hoje, haveria de entrar. Não pôde, estava fechado. Como sempre. Por algum motivo, aquele lugar estava sempre fechado. Eram vinte para as onze da manhã. De noite, sempre via as luzes em néon lilás, formando um desenho curioso nas paredes daquele edifício. Na porta, um telão bonito, em cujas mensagens nunca tinha prestado sequer atenção. Eram muitas imagens. O tempo todo. E tudo é mais rápido de bicicleta.
Já de volta à Rua do Catete, viu, de longe, a feira tomando a rua lateral à praça. Entrou na pizzaria – vazia, àquela hora - ao lado do cinema. Procurou no balcão sua amiga, e foi surpreendido por uns beliscões nas costas de um jeito que ela fazia e que ele odiava. Ela já estava sorrindo e perguntou porque ele não tinha ido ontem à noite com eles.
Rindo, meio desajeitado, ele quis desconversar, porque na verdade queria ter ido e não pensou em nenhuma desculpa para dar. Eles chegaram até à porta da pizzaria e, neste instante, ele olhou a fonte no centro do Largo do Machado e viu que ela estava funcionando. O sol batia na água esguichada, formando uma admirável cortina branca e brilhante. A fonte parecia alta e limpa. Os dois se detiveram alguns instantes o olhar. As pessoas pareciam parar e notar que havia algo diferente na praça naquela manhã, mas ninguém pôde perceber exatamente o quê.
- Porra, nunca vi esse chafariz funcionando, disse ele.
- É mesmo, rapaz, acho que eu também nunca vi...


***


A infiltração na parede cinza surgia do teto e pingava direto do teto num pano-de-chão, numa freqüência que fazia sua substituição necessária a cada três dias. O restante da água escorria pela parede até a caixa de aço da mangueira contra incêndios, formando um caminho de limo marrom escuro e infiltrava-se em outro lugar. Devia o limo tão entediante coloração à pouquíssima luz que recebia da janela do final do corredor; embora no décimo primeiro andar, fazia mais de trinta anos os fundos do edifício na Marechal Floriano fora encoberto pela construção de um centro empresarial mais alto, onde funciona hoje uma universidade particular.
Na sala 1106 funciona a SAEP – Seção de Administração de Espaços Públicos, da Fundação de Águas do Município. Antigamente, um mesmo órgão municipal era responsável pelos serviços de iluminação, limpeza, manutenção e reparo das ruas e logradouros públicos da cidade do Rio de Janeiro. Diferentes governos foram paulatinamente dividindo os órgãos na tentativa melhorar a prestação dos serviços. Para cuidar das praças e da vegetação na área urbana, foi criada, por exemplo, a Fundação Parques e Jardins.
O caso específico da SAEP foi resultado de uma destas inúmeras reestruturações. Nela trabalha José Roberto Couzinho, supervisor da seção, que acaba de sair da sala 1106 e chegar diante dos elevadores. Pega um copo plástico, sustenta-o colado à torneirinha de água gelada, quando sente uma presença forte. Ele vira bruscamente, a boca do copo prende-se à torneirinha e o copo rasga-se derramando seu conteúdo parte no chão, parte em suas calças marrons de microfibra e outra parte nos sapatos de couro.
Parada diante de Couzinho, impassível, está Elluane, uma preta cheirosa. Ela se afasta um passo e espera a reação do homem. Couzinho sorri mostrando dentes amarelos e a gengiva superior cinzenta, sacode um pé, depois o outro e bate as mãos nas calças de microfibra.
- Estes copinhos são muito frágeis. Outro dia um estourou na minha mão.
Continua sorrindo e mostrando a gengiva e batendo a água das roupas. Ela faz que sim com a cabeça e diz:
- É.
Malditos sonhos. Por que estes sonhos? Couzinho sonha com aquela preta sempre, sonhos que trazem uma inquietação e raramente alegria. Fica mais inquieto quando não sonha. Bem antes de ir dormir, com freqüência, pensa se vai sonhar com ela. Nos sonhos, ela não é cheirosa; não tem cheiro, mas sorri – só não pode saber se é sorriso complacente ou simples deboche. Pretos bonitos sentem escárnio por brancos medíocres, mas é sem querer.
Elluane se desviou da poça d’água formada no chão e desceu pelas escadas. A moça não sabe que Couzinho sonha com ela quase todas as noites. Também ignora seu nome e o que faz naquele prédio com as calças de microfibra e os sapatos de couro. Naquela hora, antes de encontrar Couzinho derramando água no corredor, pensava na viagem de volta que faria com o enorme urso de pelúcia que comprara para presentear a sobrinha Jackeline. Depois lembrou da revista de notícias dos artistas que tinha deixado com a secretária, no sétimo andar, e desceu as escadas.
Couzinho na verdade se preparava para avisar o agente administrativo Júlio de que o chafariz do Largo do Machado deveria funcionar nos próximos quinze dias, conforme ofício encaminhado pela Secretaria de Esportes da Prefeitura. Ele sabia que Júlio iria criar caso, já havia tido problemas com ele. Um mal-humorado, estúpido. E ainda essas piadinhas com o sobrenome – “seu Couzinho” –; o idiota não sabe como são os portugueses.
Chegou na sala 1112 e disse:
- Júlio, você sabe que nos próximos dias a cidade vai receber este evento aí e recebemos um ofício da Secretaria de Esportes solicitando o funcionamento dos chafarizes da cidade e falta ligar o do Largo do Machado e como fica na sua região administrativa eu gostaria que você providenciasse isso, por favor.
Para surpresa de Couzinho, que jurava que o babaca do Júlio ia inventar alguma coisa grosseira ou ia fazer piadinha, ele respondeu com calma:
- Seu Couzinho, já estava sabendo deste ofício e já providenciei o funcionamento de todos os chafarizes relacionados na minha região. Mas o Largo do Machado pertence à Região 4, cujos bairros são Catete, Laranjeiras, Glória e Lapa. Não sou eu quem cuida da Região 4.
- E quem é que cuida?
- Não sei.
Couzinho ficou de pé parado, olhando para Júlio, pensando em quem seria o responsável pela Região 4. Júlio já olhava a tela do computador.
- Seu Couzinho, parece que quem cuida da Região 4 é seu Ezequiel, mas ele não costuma vir aqui.
Ele voltou a cabeça e viu que quem falava era a colega de sala de Júlio, dona Rosane, que prosseguiu:
- Parece que o sobrinho dele é um menino que trabalha na limpeza do prédio aí da faculdade. Acho que eles moram num morro na Gamboa, não sei.
- Gamboa?


***


Na birosca da Rua 2 do Morro dos Prazeres, chamam Ezequiel Teles dos Anjos ao telefone.
- Disseram que é do serviço do senhor, seu Ezequiel.
Um senhor de pele marrom, bigode grisalho como os cabelos crespos sob o chapéu, vestindo bermudas e calçando chinelos pega no aparelho e ouve. Desliga o telefone.
- Puta que pariu! Sabia que ia sobrar para mim esta merda de evento na cidade.




A um beija-flor.



Rio de Janeiro, agosto de 2007






Terceiro desdobramento de Vermelho Fato

Vermelho-fato
Ápice e declínio
flor sem fruto


Vermelho-fato
Vivo
na lembrança da noite.
Morto
ao raiar do dia



Arrebatador inesperado
transformador rio vermelho
fugaz devaneio
Nuvem


Pleno
Foi início e fim
no que foi dito
no que não foi dito
no que não foi feito


Emoldurado
Anuncia outras cores
ou
a escuridão do nada


Revivê-lo
latente
Mas vermelho é rio
não se repete
desbota a cada infortúnio





À moça que vivia na Almirante Tamandaré, que hoje mora longe e foi quem escreveu estes versos belos










Monotonia blogosférica

Duas postagens no ano. Não sei porque este blog é mantido. Aliás, há muitos motivos que se pode aventar para se criar um blog, especialmente numa conversa em que um dos interlocutores seja um egresso dos estudos de comunicação. Mas este interlocutor faz tempo anda desiludido com intelectualidades triviais.
O que acontece, de fato, é que o blog funciona para mim como uma ferramenta pouco ágil. Tenho a idéia, penso: "escreverei isso no meu blog", mas acabo não tendo tempo ou relegando a tarefa de perder alguns minutos escrevendo para um dos últimos planos.
Enquanto não inventam um blogcast, por meio do qual as idéias seriam atualizadas no momento em que se fizeram na mente, enviadas de um celular blackberry, de dentro do metrô, na rua ou em qualquer lugar, ou enquanto não consigo mais tempo dentre todas as coisas que me fazem perdê-lo por completo, tento recomeçar.
Se, no fundo, algo me diz que poderá servir de alguma coisa, escrevo qualquer coisa. E publico as imagens de que gosto muito, que fiz e que refaço a cada vez que as revejo.

sábado, 18 de abril de 2009

Maricá




Casa. Frutas gogóias. Cadeira verde. Nina. Água do poço. Carinho. Caminho. Estrada. Casa. Água de coco. Acabou.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Ponto de ônibus

Segunda-feira, dia 26 de janeiro, o documentário Outros Carnavais e Infantes da Piedade foi exibido pela primeira vez para as pessoas que dele fizeram parte. Havia, além dos nossos novos amigos que se transformaram em personagens do filme e seus familiares, havia muitos amigos na platéia. Amigos, que são da família, amigos amigos. Foi uma noite bonita. Uma confraternização, que certamente não será esquecida por muitos dos que estiveram no Ponto Cine naquela ocasião, por transformadora, especial que foi.
Na saída, após os cumprimentos e as despedidas na singela recepção oferecida aos convidados, o shopping onde funciona o cinema já estava fechado, poucas pessoas restavam ainda por lá, encaminhamo-nos também para ir embora, pois a viagem de volta ao Centro da cidade prometia ser longa. Passava das onze horas da noite, saímos Marcela, meu pai, Pedro e Victor e eu para o ponto de Ônibus. Para minha surpresa, ainda tinha gente esperando condução para voltar para casa: Algenir e sua esposa, Bira e suas filhas e Jorge Bogodô. Nossos novso amigos.
Foi um novo encontro, o que aconteceu depois do evento. Não éramos mais sambistas, passistas, presidentes de escolas de samba, personagens, gente de carnaval, documentaristas, espectadores, universitários. Éramos pessoas comuns, cidadãos, cujos destinos dificilmente teriam se cruzado dentro de um ônibus, ou à espera de um.
Feito passageiros, entramos todos no mesmo Ônibus, dividindo não só o espaço, mas a curiosidade pelo outro. Um novo encontro - breve e sacolejante. Descemos do ônibus, Marcela, meu pai, Pedro e Victor e eu, para tomar o que vinha atrás e que nos levaria direto ao nosso destino. Despedimo-nos, aos sorrisos, despediram-se os destinos, "boa noite".
Mais à frente, na Avenida Brasil, o Ônibus parou para desembarque de passageiros. No ponto havia mais gente à espera de condução: Tia Annir, Hellen, Valesca, Annir e outras crianças da família. Um aceno, outro encontro, este muito mais breve, "boa noite, até outro dia". Esperavam condução para voltar à casa, como faziam Algenir, Bira e sua família, como talvez tenham feito sempre.
Quando, finalmente, o ônibus despontava veloz rumo à cidade, os pensamentos já voavam pelas pistas daquela grande Avenida.