sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Quem era Dilcéia?

Quem conta a história é Dilcéia:
"Já fiz muita coisa. Vim pequena de Campos, morava na roça. Tive um marido que deu tudo para mim. Morava em casa grande, de três quartos. Levava uma vida boa, tinha tudo para minhas três filhas. Morava em bairro. Depois começou a não dar certo, a gente a brigar. Não dava mais para ficar junto. Aí que eu fui morar em favela, levei minhas filhas. 
No início eu me envolvia, ficava na Associação de Moradores. Precisa muita coisa lá, sempre tem gente precisando. Mas vi que era complicado, começam a achar que você está querendo aparecer, ou está ganhando alguma coisa. Deixei de lado... Hoje não participo mais.
Minha vida hoje é mais tranquila. Não preciso mais esquentar a cabeça, minhas filhas estão criadas já.  Três negonas bonitas, bem feitas de corpo. Trabalho só assim, do jeito que você está vendo, final de semana: ganho o meu e acabou.
Mas só comecei a pensar assim quando decidi não trabalhar mais em ônibus. Eu era trocadora no 390 - Santa Cruz - Coelho Neto, conhece? Faz aquilo ali tudinho na Intendente Magalhães, roda para caramba. Trabalhava à noite. Era sair rezando para o ônibus não ser assaltado. Um dia o cara entrou. Eu estava começando a viagem. Veio pedindo o dinheiro. Disse para ele que a única coisa que ele tinha para levar de mim ali era a vida mesmo. 
O revólver já estava apontado, ele atirou na minha cara. 
Alguma coisa fez aquele tiro não sair. Deus sabe."



2010. Vestígios de uma história mal anotada... Dois desconhecidos, uma porta aberta pelo espaço público, pela "pesquisa de personagens" e pelo desejo de verbalizar... Comoção, certa vergonha e alívio se misturaram ao amargo na boca e encheram os olhos; um pôr-do-sol fetiche, mais que nunca, perdeu os sentidos que podia ter e que, normalmente, teria.



segunda-feira, 31 de março de 2014

Falácias


Avenida Vieira Souto, Praia de Ipanema, Rio de Janeiro/RJ


Estes são os novos pontos de ônibus da orla de Ipanema e do Leblon. Estado de arte das intervenções urbanas do Superprefeito de Papel no cenário maravilhoso de papel-machê da Cidade Olímpica. Até na Avenida-Vedete, um trabalho de porco.


Antes de dizerem que a gente não reconhece os feitos dos governantes cariocas, aí está uma mudança radical: água de coco a R$5,00 em todos os quiosques. Valorizando o patrimônio imaterial desta wonderland!



Crasse merda, crasse rica, todo mundo: a conta já chegou!

Coisas Estranhas #04

Homens que copiavam.


quinta-feira, 6 de março de 2014

Omnibus


Pegando o ônibus
Pregando no ônibus
Pregado no ônibus
Pregão no ônibus
Perrengando no ônibus 
Pegando vento na cara no ônibus
Pegando poesia e vento na cara no ônibus...

Como se pode fazer coisas
no ônibus!


Vrummmm...


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Quase SMS #01


A camelô falou, cortês:
- Obrigada. Volte sempre!
Fiquei confuso.




terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Transcrições Noturnas #07



"Gilliatt não era tanto, nem tão pouco. Era um pensativo. Nada mais. Contemplava a natureza de um modo singular. 

Tinha visto algumas vezes, na água do mar, completamente límpida, animais inesperados, de grandes dimensões, de formas diversas, os quais, fora da água, assemelhavam-se a cristal mole, e, tornados à água, confundiam-se com ela, pela identidade de transparência e de cor; disto concluía ele que, se a água era habitada por transparências vivas, bem podia ser que o ar fosse habitado por transparências igualmente vivas. Os pássaros não são os habitantes, são os anfíbios do ar. Gilliatt não acreditava no ar deserto. Dizia ele: se o mar está cheio de criaturas, por que motivo a atmosfera será vazia? Criaturas cor do ar podem escapar aos nossos olhos por causa da luz; quem nos prova que essas criaturas não existem? A analogia indica que o ar deve ter os seus peixes, como o mar; os peixes do ar serão talvez diáfanos, benefício da providência criadora, tanto a nosso favor, como a favor deles; deixando passar a luz através da sua forma, e não fazendo sombra, ficam ignorados de nós, e nada poderemos saber. Gilliatt imaginava que, se se pudesse esvaziar a atmosfera, pescando-se no ar como num tanque, achar-se-ia uma porção de criaturas surpreendentes. E, acrescentava ele, na sua cisma, muitas coisas se explicariam. 

A cisma, que é o pensamento no estado nebuloso, confina com o sono e preocupase a respeito dele, como de sua própria fronteira. O ar habitado por transparências vivas seria o começo do Desconhecido; além abre-se a vasta porta do possível. Outros seres e outros fatos. Nada sobrenatural; mas a continuação oculta da natureza infinita. Gilliatt, no ócio laborioso que compunha a sua existência, era um observador estranho e fantástico. Chegava a observar o sono. O sono está em contato com o possível, que também chamamos o inverossímil. O mundo noturno é um mundo. A noite é um universo. O organismo material humano, sobre o qual pesa uma coluna atmosférica de 15 léguas de altura, chega à noite fatigado, cai de fraqueza, deita-se, repousa; fecham-se os olhos da carne; então, naquela cabeça adormecida, menos inerte do que se crê, abrem-se outros olhos, aparece o Desconhecido. As coisas sombrias do mundo ignorado tornam-se vizinhas do homem, ou porque haja verdadeira comunicação, ou porque as distâncias do abismo tenham crescimento visionário; parece que as criaturas invisíveis do espaço vêm contemplar-nos curiosas a respeito da criatura da terra; uma criação fantasma sobe ou desce para nós, no meio de um crepúsculo; ante a nossa contemplação espectral, uma vida que não é a nossa agrega-se e dissolve-se, composta de nós mesmos e de um elemento estranho; e aquele que dorme, nem completo vidente, nem completo inconsciente, entrevê as animalidades estranhas, as vegetações extraordinárias, as cores lívidas, terríveis ou risonhas, as larvas, as máscaras, os rostos, as hidras, as confusões, os luares sem lua, as obscuras decomposições do prodígio, o crescer e o decrescer no meio da espessura turvada, a flutuação de formas nas trevas, todo esse mistério que chamamos sonho, e que não é mais do que a aproximação de uma realidade invisível. O sonho é o aquário da noite. 

Assim sonhava Gilliatt."


Trecho do CAPÍTULO VII - CASA EMBRUXADA, MORADOR VISIONÁRIO, Os Trabalhadores do Mar, Victor Hugo (1881). Tradução: Machado de Assis