Quem conta a história é Dilcéia:
"Já fiz muita coisa. Vim pequena de Campos, morava na roça. Tive um marido que deu tudo para mim. Morava em casa grande, de três quartos. Levava uma vida boa, tinha tudo para minhas três filhas. Morava em bairro. Depois começou a não dar certo, a gente a brigar. Não dava mais para ficar junto. Aí que eu fui morar em favela, levei minhas filhas.
No início eu me envolvia, ficava na Associação de Moradores. Precisa muita coisa lá, sempre tem gente precisando. Mas vi que era complicado, começam a achar que você está querendo aparecer, ou está ganhando alguma coisa. Deixei de lado... Hoje não participo mais.
Minha vida hoje é mais tranquila. Não preciso mais esquentar a cabeça, minhas filhas estão criadas já. Três negonas bonitas, bem feitas de corpo. Trabalho só assim, do jeito que você está vendo, final de semana: ganho o meu e acabou.
Mas só comecei a pensar assim quando decidi não trabalhar mais em ônibus. Eu era trocadora no 390 - Santa Cruz - Coelho Neto, conhece? Faz aquilo ali tudinho na Intendente Magalhães, roda para caramba. Trabalhava à noite. Era sair rezando para o ônibus não ser assaltado. Um dia o cara entrou. Eu estava começando a viagem. Veio pedindo o dinheiro. Disse para ele que a única coisa que ele tinha para levar de mim ali era a vida mesmo.
O revólver já estava apontado, ele atirou na minha cara.
Alguma coisa fez aquele tiro não sair. Deus sabe."
2010. Vestígios de uma história mal anotada... Dois desconhecidos, uma porta aberta pelo espaço público, pela "pesquisa de personagens" e pelo desejo de verbalizar... Comoção, certa vergonha e alívio se misturaram ao amargo na boca e encheram os olhos; um pôr-do-sol fetiche, mais que nunca, perdeu os sentidos que podia ter e que, normalmente, teria.
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