quinta-feira, 17 de maio de 2012

Suicídio de Quinta-feira

Despeço-me

Ando nas ruas e já na próxima esquina
Não sou mais

Fatigado de tanto meter ao peito tantas vidas,
Procuro sobriamente deitá-las fora,
Mas me vêm em forma de desatinada dor.

Um passo e deixo na rua um pouco de mim
Mas à frente o mundo me antecipa e me refaz
E caminho perpassado pelos modos, de outros, incômodos

Exausto de mal-moldurados quadros,
favelas, gravuras, vitrines, caixotes-edifício
Integrantes-fato que participam à orquestra do caos
Que me constrói

Cometo hoje o mesmo gesto
Da outra quinta-feira, última quinta-feira
Quando me suicidei

Mas só mesmo o gesto se repete
Refeito de outro modo
Pois é outra a mão
A executar e não é o mesmo
Quem o leva a termo

Diante do caixote-edifício em que habito,
Esqueço-me dos demais caixotes-edifício que
A cidade afirma, das mal-molduradas vidas
Incomodamente metidas ao peito e deitadas fora
Sobriamente.

Despeço-me
Não sou mais

Me demito: bom dia!

17/07/2007

Cuíca não morre, canta.



sábado, 12 de maio de 2012

sexta-feira, 27 de abril de 2012

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Leituras dos deslocamentos


Metrô de São Paulo, 29.11.11.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Sonhos dos demônios de verdade


"Estou na fila de um lugar, cubículo, luz fria, elevador, casa lotérica, correio, lojinha de relojoeiro. Leblon, na Visconde de Pirajá do Leblon. No guichê, por detrás das grades pretas antigas, um senhor: branco, vastos bigodes brancos, óculos redondos, olhos claros, maquinista de trem. Cobrador. Na minha frente, um senhor: cabelos brancos, terno branco, colete branco, relógio de algibeira, bengala, cafonices, exageros de novela de época de mamãe ver. Isso não é mais jeito de alguém estar vestido. As roupas dos outros - a minha, inclusive - são contemporâneas. Ele está muito bem vestido. Elegante. Era o senhor Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil. Está pronto para ser atendido. É uma passagem, ele quer uma passagem; também quero comprar uma passagem e por isso espero na fila. É a vez do Sr. Fernando Henrique Cardoso. O FHC. Sei que a passagem dele custa caro, mais de R$70… A minha também vai custar. Nem em sonho se sonha com transporte barato no Brasil. Não vou cumprimentá-lo, nem falar com ele, nem insultá-lo. É só um cidadão comum, ex-presidente, exercendo sua existência de cidadão, num cubículo-guichê qualquer comprando um bilhete de qualquer coisa para qualquer lugar. De trem? Aqui no Rio, não tem trem. No Leblon, não tem nenhum trem. Deve ser ônibus. Xingar, acusar, cobrar satisfações? Seria como xingar um jogador que joga em outro time (que não o Botafogo) quando o encontrasse ao acaso na fila da padaria comprando um picolé para o filho. Na vida real, todos passeiam com a família, ou passeiam sós. Mesmo tendo muitas perguntas a fazer, não devo importunar o homem. Sociedade democrática de direito. Fernando Henrique Cardoso dialoga com o cobrador, que emite seu bilhete, entrega-no pelo gradil, acena. Fernando Henrique Cardoso retribui, acenando com o bilhete e apontando por sobre os ombros. É a minha vez. O cobrador, ao que pergunta o meu destino, diz que devo pagar a passagem do Fernando Henrique Cardoso. Como assim? E quem disse ao senhor que conheço àquele senhor? E que estava autorizado a cobrar de mim sua passagem? Dava mais de R$130, não tinha o dinheiro. Vim só comprar minha passagem, que custa mais de R$60. Que desaforo! Não sei se paguei as passagens, não sei se o cobrador maquinista bigodudo Rui Barbosa veio acompanhar a pendenga, mas saí atrás do Fernando Henrique Cardoso a pedir explicações. No ponto de ônibus, na calçada, na frente das grades de uma praça, os que esperam, esperam com roupas contemporâneas. Fernando Henrique Cardoso espera também, olhando se o ônibus já vem. - Então não digo-lhe nada, não pergunto-lhe nada, não peço-lhe explicações, não arranco-lhe respostas, respeito a fila, a liberdade, a justiça, a sua muita idade e o senhor diz ao homem cobrar de mim a sua despesa? Se então nem nos conhecemos? O Fernando Henrique Cardoso lá, esperando o ônibus, a boca mole, o ar inteligente, o jeito inteligente. Inteligentel. E as pessoas da rua do Leblon - futuros passageiros - a olhar; e eu gritando, dedo em riste, gritando verdades intestinas que só agora sei; sei que desejei muito mesmo dizer… E mais, mais não compensa contar…"



Sonhei de verdade. Foi um sonho, de verdade. No meio da noite, acordei. Um, maravilhado com a máquina que engendra desnarrativas fantásticas. Máquina que todo mundo tem, ninguém precisou comprar e da qual, em contrapartida, ninguém pode se livrar. Dois, tive medo de não lembrar, como não fosse um sonho ruim, fosse só esquisito. Vindo logo o consolo da consciência do próprio corpo que jaz na cama - era só sono!, tratei de ficar alguns instantes desperto. (Trazendo ele para o ego? Memorizando?) Depois, desacordei. De dia, mais tarde, ele brotou. Encontrei-no quase todo! E mais não compensa contar...