sábado, 18 de dezembro de 2010

Em resposta a SMS de fã



Ainda bem que existe o Belchior para ancorar nossas desculpas esfarrapadas. Mas, queridos(as) leitores virtuais (sempre potenciais), este blog não enguiçou. Não é a sepultura cibernética de uma caixa de ideias, nem este post é seu epitáfio, sua lápide. Isso já conteceu outras vezes: monotonia blogosférica. Descuido deste quarto de memórias, mas seu status de fórum afetivo subsiste. As datas indicam há quanto tempo esta bandeira está plantada. Se alguém vem aqui, vem sem urgência. Há urgência! Mas peço paciência para colar neste fundo azul novas letrinhas douradas. Refôlego.


terça-feira, 8 de junho de 2010





Olhei no espelho e vi um cabelo saindo da minha orelha. Coisa esquisita. Era um único longo fio negro, como um pelo de barba nascido no lugar errado. Aí pensei na cadela que temos mãe e eu: Nina. Ela tem orelhas esplêndidas. Incrivelmente pontiagudas são aquelas antenas, quase sempre em riste. São orelhas peludas. Só mesmo bem perto do orifício do ouvido os pelos começam a rarear. Nina é desenhada para ouvir aguçadamente, correr velozmente, trucidar animais menores, devorar pedaços de carne, estar protegida de temperaturas invernais, mas, amigada ao ser humano, praticamente não usa seus atributos de predadora canina.
Vi então minha barba. Embora tremendamente falha, sua presença sugere que, se fosse necessário, os pelos cobririam muito mais e melhor o meu rosto, protegendo-o de danos na pele e do frio. Nossos ancestrais eram homens muito peludos. Exceção feita dos mamíferos que foram viver na água - as baleias, os golfinhos, os botos, as ariranhas, as focas -, todos os mamíferos são peludos. Leões-marinhos e peixes-boi mantem ainda uma franja tosca, como nós. Tudo indica que funcione assim: se uma espécie não tem mais necessidade de pelos para sua sobrevivência, vai deixando de produzi-los a fim de não desperdiçar energia para sua preservação. A Natureza é econômica. Hodiernamente, nos escritórios, diria-se que a Natureza racionaliza recursos.
Não tínhamos mais necessidade de pelos cobrindo os corpos. (Ilustre-se tal refinamento no processo descrito para chegarmos finalmente à pele de uma mulher - seu dorso, pernas, seios, ventre.) Não precisamos mais dos nossos cabelos. E não precisaremos mais dos dentes cisos, e logo de dente nenhum. Não teremos mais unhas. Garras não mais nos servem para nada. Seremos a humanidade Simpson. (Já há muitos destes novos seres por aí.)
Tanta divagação sobre temas atinentes à Biologia surgiu de uma consternação. Severa, creio. A notícia do ataque ao navio no litoral da Faixa de Gaza é daquelas que impõem grades em volta de mundos individuais. Desesperança. Para onde correr? Onde fica a saída? Como é possível que nos consideremos tão diferentes entre si, capazes de abranger com nossos tempos de homens o tempo da Humanidade? E alcançar ainda o Tempo da Natureza? (Esta talvez queira só ensinar a não ter pressa.) Planejar aniquilar pessoas, e realizar o plano. Formular políticas, baixar decisões coordenadas em muitos níveis, contar com a anuência de um sem número de pessoas, para invocar a morte.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Horóscopo de amor negro



. Fazia muito tempo tinham rompido. Não se falaram mais. E não mais se viram. Tinham sido amigos, ficado próximos, se apoiado. Beijaram-se com ternura. Mas romperam.
Um dia, ela fez contato. Disse que tinha pensado nele e que, por algum motivo, ficou triste. Foi só.
. Ele não quis responder, embora não tivesse esquecido. Mais alguns dias, teve a sensação de que junho fosse o mês dela:
- "Seu anivesário é um junho"?
- "Novembro".
- "Você é escorpião".
. Embora ele se referisse ao signo do horóscopo, tema que não era de seu feitio mencionar, nunca mais se falaram.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Citações involuntárias #02




ME TELEFONA

Sei que você
Não ficou feliz
Quando a gente se separou
Deixa de onda
Meu bem
Vem pra cá
E vamos nos queimar
Nesse fogo do amor

Me dá um toque
E eu já penso
Em tocar
Em você
Me dá um cheiro
Que essa noite vai prometer


Me telefona
Me manda um beijo
Que eu estou aqui morrendo
De saudades
E desejos

Me mande uma carta
Pelo menos pra me consolar
Que o meu coração
De saudades não vai aguentar


Márcio Flay



quinta-feira, 27 de maio de 2010

705


Aconteceu alguns dias depois que me mudei, quando a reforma do conjugado terminou. Eu tinha a plaquinha na mão. E só a olhava. Gravado no pequeno pedaço de metal, lia-se apenas: "705". Escolher o lugar exato da porta (ou do alisar), dois mínimos parafusos, nenhum esforço para atravessar a madeira, e lá estaria.
Não pude. Aquilo era solene demais. Exigia a presença de uma autoridade, de alguém importante. Liguei para o pai, que já nesta época (2010), sabia atender uma chamada no telefone celular.

Comprar a plaquinha foi curioso. Tive a sensação de que não iria esquecer aquilo. Pelo visto, não esqueci. Mesmo assim, não me parece que se faça bem confiar em lembranças ao toque de nossa consciência.
Na loja da Rua Buenos Aires: - Vocês tem aquelas plaquinhas com numeração para colocar em portas, portões, essas coisas?
- De que número você precisa?
- 705.
- Deixa eu ver...
A caixinha de madeira, bem à mão do vendedor, parecia esquecida. Nela, plaquinhas com diversos números inscritos; algumas plaquinhas eram, na verdade, algarismos arábicos isolados, para serem adquiridos em conjunto e formar o número desejado pelo comprador. "Muitas casas dentro desta caixinha", pensei. O vendedor a vasculhou, vi aparecerem o 301, o 107, o 603, 701 e... 705! Foi logo na primeira loja que encontrei. Não esperava que fosse tão fácil.

Meu pai chegou. Era uma manhã de sábado. Já tinha me empenhado para arruinar o que pudesse haver de protocolar naquela cerimônia, tinha bebido algumas cervejas e o esperava ansioso, chave de fenda na mão, para terminar aquilo tudo. Ou começar...
Continuamos com as cervejas. Sem cerimônia.
Depois de um tempo, ele subiu na escada, com a agilidade que não era a minha, que não era a dele com seus 25 anos. Equilibrou-se para apertar os parafusos, afixou a peça. Sacramentou: " LAR".
Quem passa hoje pelo estreito e imundo corredor, lê numa das portas: "912". O vendedor embrulhou a plaquinha errada. Não existe o apartamento 912 no meu prédio. Não existe nem o nono andar. Não existia...

Ponderações

Voltar para casa é como ouvir música antiga.

Coisas estranhas #02


domingo, 28 de março de 2010

Esquinas dos Cosmos






Pedra do Sal, 2009
(Largo João da Baiana, Morro da Conceição, Rio de Janeiro - RJ)

"Estás en todas las partes... Como fotos".





Quando voltei, havia muitos poros abertos. Muitos canais. A tudo meu corpo respondia com a mesma abertura, a mesma entrega, mas o ambiente era bem mais hostil, áspero. Harmônico, descontraído, carinhoso, estranhei a dureza e a sujeira (poeira) das coisas, seu ruído incessante; e sofri.
A cada novo baque, vinha a imagem do amor gestual com que passamos os dias. O amor que fazíamos em gestos. Amor de toque, toque na terra, no céu, no vento, na água, na alma. Voltava-me a doçura dos abraços. Vinha-me, mas em retângulos mal enquadrados.
Sentimentais fragmentos. Os rostos. O conforto da deselegância maliciosa do meu idioma, sensual e tenro, ante a força e a austeridade, amarrado na formalidade, preso na monotonia da certeza, do teu. As bocas se amigando, as vozes - a tua e a minha - soadas no silêncio da intimidade. Os risos - os teus e os meus. E os beijos - nossos.
Passei ontem lendo poesia todo o dia, enquanto pensava em ti.


domingo, 21 de fevereiro de 2010

Coisas estranhas #01




No pequeno cartaz, lia-se: "FAVOR NÃO ASSO AR NARIS NESTE LAVATÓRIO NO HORARIO DO ALMOÇO VÁ NO BANHEIRO OBRIGADO"

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Semente


"Numa noite chuvosa de domingo, ele e ela se reencontram no sofá da casa dos pais dele.

O bairro, Flamengo. A casa, vazia.
...

Ela: Você tem cara de príncipe, sabia?

Ele: Isso é um elogio?

Eles riem.

...

Fim".

as.trá.ga.lo

sm (gr astrágalos)

a) Anat Osso do tarso que, de um lado, articula com a tíbia, e, do outro, com o calcâneo e o escafóide.


b) Arquit Moldura circular, em forma de pequenas bolas enfiadas, com que se orna a parte superior do fuste de uma coluna.

c) Artilh Ornato em forma de filete que rodeia o canhão, junto à boca.

d) Bot Gênero (Astragulus) de ervas e arbustos da família das Leguminosas, caracterizados pelo estandarte estreito da corola, a carena obtusa e a fava carnosa ou papirácea não inflada.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Liberdade


Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te,
Dominadora, em férvido transporte,
Direi que és bela e pura em tôda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista fôrça humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dôr,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.


São Paulo, Presídio Especial, 1939

Carlos Marighella

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Transcrições Noturnas #06



- "MUNDO, mundo, vasto mundo"!
- "Grito imperioso de brancura em mim"!
- "Meu carnaval sem nenhuma alegria"!
De súbito, um deles sugeriu:
- Vamos subir no Viaduto?



Hugo era o mais ágil: galgava o parapeito com presteza, corria sobre a estreita fita de cimento, a trinta metros do solo, como se andasse em cima de um muro. Curvado, subia o grande arco que se elevava, abrupto, sobre a própria amurada. Eduardo subia do outro lado. Lá em cima se encontravam, equilibristas de circo, passavam um pelo outro, vacilavam, ameaçavam cair. Mauro ainda não tivera coragem; os dois se sentavam na viga de cimento armado suspensa no espaço, balançavam as pernas no ar, gritavam para ele:
- Sobe, carcamano!
- "Mijemos em comum numa festa de espuma"!
Naquela noite Mauro se animou a subir. Quando se viu largado no vazio, tendo sob os pés apenas meio metro de cimento e lá embaixo, muito embaixo, os trilhos da estrada de ferro a brilhar, um trem passando exatamente naquele instante, não resistiu à vertigem. Deitou-se de bruços, agarrou-se com força, dilacerando as unhas na superfície áspera, pôs-se a chorar:
- Não desço mais. Pelo amor de Deus me tirem daqui. Chamem o Corpo de Bombeiros!


Trecho de "O Encontro Marcado", de Fernando Sabino

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Barbearia





Começou assim: na esquina da Almirante Barroso com a Avenida Rio Branco, caminhava reto, passos certos, que em algo remetiam ao andar de seu pai. O horário de verão deixava que ele visse a luz do dia quando saía do trabalho e, é preciso admitir, podia assistir inclusive ao sol se por nas costas das montanhas da Tijuca. Mas, nesse dia, havia o sol e havia também uma chuva, constante, confusa. E refrescante. Era o fim de um dia tropical. Basta imaginar esta combinação para saber que o desenho se formava em tons de amarelo.

Ainda bem próximo ao edifício prateado, no início da caminhada, pareceu-lhe que vira uma menina conhecida. Logo distraiu-se com a boa música que vinha dos fones de seu walkman. Passou pela Catedral e seguiu.

De repente, como se não fosse inusitado que estivesse ali, apareceu uma moça que vinha de sua cidade (da cidade em que nascera, não na que tinha sido criado e que, esta sim, era sua). Tinha sido namorada de seu amigo; poderia ter sido sua. Foi até ao outro lado da rua e fez questão de lhe cumprimentar.
Ela comia chocolates. E ensinava seu colo a ser ainda mais feminino. Se não fosse parecer mentira, dir-se-ia que o telefone portátil dela tocou e era ele, o amigo. Audioconferência telepática.
O tempo seguiu sol e chuva, aquilo perdurava.

Chegou num ponto em que não esperava encontrar a mais ninguém. E ia numa missão ignóbil: encarar seu rosto em um espelho de cabeleireiro, na Rua Frei Caneca. Foi quando viu a moça a quem julgara ter visto próximo ao Largo da Carioca. Era ex-namorada de seu amigo, como poderia ter sido sua.
- Psiu, fez, mesmo sabendo que não se deve chamar ninguém assim.
Havia decidido não fazer esforço para tratar bem algumas pessoas, e guiava sua escolha por razões aleatórias. Chamou-a pelo nome, para fazê-la parar. A chuva continuava, amarela; ela parou.
Trocaram palavras amistosas, mas um tanto desajeitadas. Falaram de seu amigo e de como é comum que se encontrem, por acaso. O telefone não tocou na hora, desta vez. Quem sabe houvessem trocado - ela e o amigo - algumas mensagens, antes ou depois daquele encontro casual.

Quando chegou na porta do salão de cabeleireiros, ainda chovia. Ficou com preguiça: aquilo tudo era muito estúpido, ter de sentar numa cadeira diante do espelho para ter os pelos da cabeça aparados por alguém; se vivesse antes iria numa barbearia, hoje vai a um salão de beleza unissex; tudo estúpido, tudo ridículo, tudo sutilmente inútil.
Deixou para outro dia a árdua tarefa de encarar no espelho a si, ao pai, aos amigos.