terça-feira, 14 de julho de 2009

Transcrições noturnas #178






O Velho está olhando os prédios, muito compenetrado, encostado na grade de ferro que cerca o antigo Buraco do Lume, que depois de tapado virou um gramado com poucas árvores, onde moram alguns mendigos.
“Teu arroz já chegou”, diz Augusto.
“Está vendo aquela sacada ali, daquele sobrado pintado de azul? As três janelas do primeiro andar? Foi naquela janela à nossa direita que eu a vi pela primeira vez, debruçada no balcão, os cotovelos apoiados numa almofadinha com bordados vermelhos.”
“O arroz já está na mesa. Ele tem que ser comido logo que sai do fogo.”
Augusto puxa o Velho pelo braço e entram no restaurante.
“Ela mancava de uma perna. Isso para mim não tinha importância. Mas para ela era importante.”
“É sempre assim”, diz Kelly.
“Você tem razão”, diz o Velho.
“Come o arroz, vai ficar frio.”
“As mulheres de vida airada são detentoras de uma sinuosa sabedoria. Você me deu um momentâneo conforto ao mencionar a inexorabilidade das coisas”, diz o Velho.
“Obrigada”, diz Kelly.
“Come o arroz, vai ficar frio.”
“Vai ser tudo derrubado”, diz o Velho.
“Antigamente era melhor?”, pergunta Augusto.
“Era.”
“Por quê?”
“Antigamente tinha menos gente e quase não havia automóveis.”
“Os cavalos, enchendo as ruas de bosta, deviam ser considerados uma praga igual aos carros de hoje”, diz Augusto.
“E as pessoas, antigamente, eram menos estúpidas”, continua o Velho, com um olhar triste, “e tinham menos pressa.”
“O pessoal da antiga era mais inocente”, diz Kelly.
“Era mais esperançoso. A esperança é uma espécie de libertação”, diz o Velho.




Trecho de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In: Romance Negro e Outras Histórias. Rubem Fonseca.



Nenhum comentário: