Caminhava pela Rua do Catete e resolveu dobrar à direita na Machado de Assis: vou andando pela praia, é melhor. Não era que as calçadas tomadas pelas esteiras dos camelôs o estivessem incomodando; era somente a luz lateral do sol das nove e meia que ele percebia nas entradas das lojas e edifícios, nos brinquedinhos à pilha importados da China e dos próprios chineses atrás do balcão das pastelarias.
Virou à direita e, enquanto caminhava pelo quarteirão até a praia, apenas um carro lhe cruzara o caminho. Ali não havia mais a luz amarela do sol, presa no topo dos prédios mais altos. Desviou de uma pequena poça de xixi, e aventou se quem a havia posto ali houvera sido um cachorro ou um mendigo, questionamento que logo cedeu lugar ao mês anterior, em que estava querendo pensar com calma desde a última terça.
Passava por uma verdadeira revolução: depois de sete anos como entregador da farmácia no turno da noite, conseguira convencer o gerente de que poderia ser balconista. Foram anos estudando as bulas dos medicamentos - as lia com incrível avidez e inusitado interesse. Já dominava muito mais da metade da lista de remédios vendidos e venerava, em especial, os nomes dos antibióticos. Havia passado longos momentos pensando no dia em que estaria atrás do balcão da loja, explicando à clientela: não, senhora, o mais indicado para casos de amigdalite não é amoxilina, é cefalexina.
Ainda não decidiu se irá vender remédios sem receita. As pessoas não entendem nada de remédio. Todo mundo dá palpites, mas não entendem realmente de remédios. Pode ser perigoso. Mas todo mundo vende; a maioria das entregas que ele mesmo fazia era de remédios de tarja vermelha - sem receita médica. Além do mais, o gerente não quer saber se tem ou não receita. Vai analisar caso a caso, é isso. Fato é que, desde que começara no novo cargo, há três semanas, vendera irrestritamente medicamentos para todos os clientes a quem atendera, inclusive os de tarja preta.
Chegou diante do portal do jardim do Museu da República. A entrada lateral, além do portal, que é conservado sempre assim, hoje também estava fechada e a guarita estava vazia. Parou bem diante do grande portão de ferro e olhou através da grade as pessoas que caminhavam nas aléias. Viu uma criança comendo pipoca, levemente embalada no balanço em que a tinham sentado, cujos olhos faziam menção de cerrarem-se e cujo rosto também insinuava um sorriso; e, no seu resumo, aquela pequenina figura era o próprio semblante da felicidade.
Ele não entendia a dinâmica responsável pelos fluxos de visitantes naquele parque, tampouco a relação que mantinham com os horários determinados para abertura dos portões do jardim. Sabe-se que o Palácio do Catete abre a entrada lateral do jardim na Praia do Flamengo nos dias de semana, das oito às dezoito horas, mas não se sabe se estes horários são os melhores. Quando se abria a entrada lateral na face do terreno voltada para a Praia do Flamengo, o parque se transformava em passagem para os transeuntes do bairro, que agora podiam escolher se iriam por uma das duas ruas adjacentes – Ferreira Viana ou Silveira Martins, ou por dentro do jardim. Se não estivesse trabalhando, fazendo as entregas na bicicleta, sempre escolhia o jardim: era melhor. Como o passeio da praia.
O tempo passou a ser percebido de maneira diferente desde que se mudou para o Rio de Janeiro; agravou-se a mudança com o emprego noturno. Em sete anos, era a segunda vez que caminhava pelas ruas do Catete numa manhã de sábado na condição de trabalhador diurno. Muito difícil se adaptar à nova vida. Agora podia compreender os jogadores de futebol quando disputavam partidas em outros países - sempre reclamando do fuso horário.
Mas não houve outro jeito, seu dia tinha chegado. Os passeios noturnos na bicicleta e as noites de vigília à porta da farmácia logo seriam lembrança distante. Naquele momento, porém, não percebeu que a cidade vivida assim de madrugadas fora a razão de sua existência e paixão nos últimos anos, a mais convincente para mantê-lo ali. Agora, haveria de aprender tudo outra vez.
O grande problema era saber o que fazer com os R$254,02 a mais que passaria a receber como balconista. Com o salário anterior, sobravam-lhe em média, depois de acertadas todas as despesas mensais, cerca de R$40,00, os quais nunca eram guardados. O primeiro pagamento, cuja data já se aproximava, era justo que fosse usado para comprar um colchão novo. Não dava mais para seguir dormindo no atual, um colchonete que se fosse gente seria a pessoa mais carinhosa do mundo, pois usava a espuma macia e o forro puído e áspero para envolver seu hóspede num abraço verdadeiramente intenso, morno, infernal.
Poderia também mandar para casa o dinheiro, ligar para mãe e dizer para ela comprar o conjunto estofado que anunciaram na televisão – sofás de dois e três lugares, verdes, bonitos, com encostos que vão até a altura da cabeça e braços redondos. Parece que inauguraram uma loja dessas em Santana. Se eles entregam em outra cidade, dá para comprar.
Estava à sombra das amendoeiras à beira dos campos de futebol, de onde podia sentir o cheiro de peixe frito do Lourival. Estava em jejum e sentiu-se tentado a comer, mas era ainda muito cedo para almoçar. Além do mais, não encontrou ninguém que conhecia em nenhum dos campos e também não queria mesmo saber de futebol àquela hora. Sentia-se um pouco irritado e saiu dali quando dois homens começaram a discutir por causa de uma bola saída pela lateral.
Caminhava agora pela sempre deserta calçada da Praia, do lado do Parque do Flamengo, sem saber que acabava escolhendo aquele lado da rua porque exatamente ali sopra uma brisa constante, muito leve, sempre na direção do rosto do transeunte, independentemente da direção em que se esteja a caminhar. Os homens continuaram os insultos, ouvidos cada vez mais ao longe.
Chegou diante do castelinho do Flamengo e resolveu atravessar a rua para entrar pela Dois de Dezembro. Resolvera passar diante daquele prédio novo que haviam construído lá – parece que é um museu. Hoje, haveria de entrar. Não pôde, estava fechado. Como sempre. Por algum motivo, aquele lugar estava sempre fechado. Eram vinte para as onze da manhã. De noite, sempre via as luzes em néon lilás, formando um desenho curioso nas paredes daquele edifício. Na porta, um telão bonito, em cujas mensagens nunca tinha prestado sequer atenção. Eram muitas imagens. O tempo todo. E tudo é mais rápido de bicicleta.
Já de volta à Rua do Catete, viu, de longe, a feira tomando a rua lateral à praça. Entrou na pizzaria – vazia, àquela hora - ao lado do cinema. Procurou no balcão sua amiga, e foi surpreendido por uns beliscões nas costas de um jeito que ela fazia e que ele odiava. Ela já estava sorrindo e perguntou porque ele não tinha ido ontem à noite com eles.
Rindo, meio desajeitado, ele quis desconversar, porque na verdade queria ter ido e não pensou em nenhuma desculpa para dar. Eles chegaram até à porta da pizzaria e, neste instante, ele olhou a fonte no centro do Largo do Machado e viu que ela estava funcionando. O sol batia na água esguichada, formando uma admirável cortina branca e brilhante. A fonte parecia alta e limpa. Os dois se detiveram alguns instantes o olhar. As pessoas pareciam parar e notar que havia algo diferente na praça naquela manhã, mas ninguém pôde perceber exatamente o quê.
- Porra, nunca vi esse chafariz funcionando, disse ele.
- É mesmo, rapaz, acho que eu também nunca vi...
***
A infiltração na parede cinza surgia do teto e pingava direto do teto num pano-de-chão, numa freqüência que fazia sua substituição necessária a cada três dias. O restante da água escorria pela parede até a caixa de aço da mangueira contra incêndios, formando um caminho de limo marrom escuro e infiltrava-se em outro lugar. Devia o limo tão entediante coloração à pouquíssima luz que recebia da janela do final do corredor; embora no décimo primeiro andar, fazia mais de trinta anos os fundos do edifício na Marechal Floriano fora encoberto pela construção de um centro empresarial mais alto, onde funciona hoje uma universidade particular.
Na sala 1106 funciona a SAEP – Seção de Administração de Espaços Públicos, da Fundação de Águas do Município. Antigamente, um mesmo órgão municipal era responsável pelos serviços de iluminação, limpeza, manutenção e reparo das ruas e logradouros públicos da cidade do Rio de Janeiro. Diferentes governos foram paulatinamente dividindo os órgãos na tentativa melhorar a prestação dos serviços. Para cuidar das praças e da vegetação na área urbana, foi criada, por exemplo, a Fundação Parques e Jardins.
O caso específico da SAEP foi resultado de uma destas inúmeras reestruturações. Nela trabalha José Roberto Couzinho, supervisor da seção, que acaba de sair da sala 1106 e chegar diante dos elevadores. Pega um copo plástico, sustenta-o colado à torneirinha de água gelada, quando sente uma presença forte. Ele vira bruscamente, a boca do copo prende-se à torneirinha e o copo rasga-se derramando seu conteúdo parte no chão, parte em suas calças marrons de microfibra e outra parte nos sapatos de couro.
Parada diante de Couzinho, impassível, está Elluane, uma preta cheirosa. Ela se afasta um passo e espera a reação do homem. Couzinho sorri mostrando dentes amarelos e a gengiva superior cinzenta, sacode um pé, depois o outro e bate as mãos nas calças de microfibra.
- Estes copinhos são muito frágeis. Outro dia um estourou na minha mão.
Continua sorrindo e mostrando a gengiva e batendo a água das roupas. Ela faz que sim com a cabeça e diz:
- É.
Malditos sonhos. Por que estes sonhos? Couzinho sonha com aquela preta sempre, sonhos que trazem uma inquietação e raramente alegria. Fica mais inquieto quando não sonha. Bem antes de ir dormir, com freqüência, pensa se vai sonhar com ela. Nos sonhos, ela não é cheirosa; não tem cheiro, mas sorri – só não pode saber se é sorriso complacente ou simples deboche. Pretos bonitos sentem escárnio por brancos medíocres, mas é sem querer.
Elluane se desviou da poça d’água formada no chão e desceu pelas escadas. A moça não sabe que Couzinho sonha com ela quase todas as noites. Também ignora seu nome e o que faz naquele prédio com as calças de microfibra e os sapatos de couro. Naquela hora, antes de encontrar Couzinho derramando água no corredor, pensava na viagem de volta que faria com o enorme urso de pelúcia que comprara para presentear a sobrinha Jackeline. Depois lembrou da revista de notícias dos artistas que tinha deixado com a secretária, no sétimo andar, e desceu as escadas.
Couzinho na verdade se preparava para avisar o agente administrativo Júlio de que o chafariz do Largo do Machado deveria funcionar nos próximos quinze dias, conforme ofício encaminhado pela Secretaria de Esportes da Prefeitura. Ele sabia que Júlio iria criar caso, já havia tido problemas com ele. Um mal-humorado, estúpido. E ainda essas piadinhas com o sobrenome – “seu Couzinho” –; o idiota não sabe como são os portugueses.
Chegou na sala 1112 e disse:
- Júlio, você sabe que nos próximos dias a cidade vai receber este evento aí e recebemos um ofício da Secretaria de Esportes solicitando o funcionamento dos chafarizes da cidade e falta ligar o do Largo do Machado e como fica na sua região administrativa eu gostaria que você providenciasse isso, por favor.
Para surpresa de Couzinho, que jurava que o babaca do Júlio ia inventar alguma coisa grosseira ou ia fazer piadinha, ele respondeu com calma:
- Seu Couzinho, já estava sabendo deste ofício e já providenciei o funcionamento de todos os chafarizes relacionados na minha região. Mas o Largo do Machado pertence à Região 4, cujos bairros são Catete, Laranjeiras, Glória e Lapa. Não sou eu quem cuida da Região 4.
- E quem é que cuida?
- Não sei.
Couzinho ficou de pé parado, olhando para Júlio, pensando em quem seria o responsável pela Região 4. Júlio já olhava a tela do computador.
- Seu Couzinho, parece que quem cuida da Região 4 é seu Ezequiel, mas ele não costuma vir aqui.
Ele voltou a cabeça e viu que quem falava era a colega de sala de Júlio, dona Rosane, que prosseguiu:
- Parece que o sobrinho dele é um menino que trabalha na limpeza do prédio aí da faculdade. Acho que eles moram num morro na Gamboa, não sei.
- Gamboa?
***
Na birosca da Rua 2 do Morro dos Prazeres, chamam Ezequiel Teles dos Anjos ao telefone.
- Disseram que é do serviço do senhor, seu Ezequiel.
Um senhor de pele marrom, bigode grisalho como os cabelos crespos sob o chapéu, vestindo bermudas e calçando chinelos pega no aparelho e ouve. Desliga o telefone.
- Puta que pariu! Sabia que ia sobrar para mim esta merda de evento na cidade.
A um beija-flor.
Rio de Janeiro, agosto de 2007
Virou à direita e, enquanto caminhava pelo quarteirão até a praia, apenas um carro lhe cruzara o caminho. Ali não havia mais a luz amarela do sol, presa no topo dos prédios mais altos. Desviou de uma pequena poça de xixi, e aventou se quem a havia posto ali houvera sido um cachorro ou um mendigo, questionamento que logo cedeu lugar ao mês anterior, em que estava querendo pensar com calma desde a última terça.
Passava por uma verdadeira revolução: depois de sete anos como entregador da farmácia no turno da noite, conseguira convencer o gerente de que poderia ser balconista. Foram anos estudando as bulas dos medicamentos - as lia com incrível avidez e inusitado interesse. Já dominava muito mais da metade da lista de remédios vendidos e venerava, em especial, os nomes dos antibióticos. Havia passado longos momentos pensando no dia em que estaria atrás do balcão da loja, explicando à clientela: não, senhora, o mais indicado para casos de amigdalite não é amoxilina, é cefalexina.
Ainda não decidiu se irá vender remédios sem receita. As pessoas não entendem nada de remédio. Todo mundo dá palpites, mas não entendem realmente de remédios. Pode ser perigoso. Mas todo mundo vende; a maioria das entregas que ele mesmo fazia era de remédios de tarja vermelha - sem receita médica. Além do mais, o gerente não quer saber se tem ou não receita. Vai analisar caso a caso, é isso. Fato é que, desde que começara no novo cargo, há três semanas, vendera irrestritamente medicamentos para todos os clientes a quem atendera, inclusive os de tarja preta.
Chegou diante do portal do jardim do Museu da República. A entrada lateral, além do portal, que é conservado sempre assim, hoje também estava fechada e a guarita estava vazia. Parou bem diante do grande portão de ferro e olhou através da grade as pessoas que caminhavam nas aléias. Viu uma criança comendo pipoca, levemente embalada no balanço em que a tinham sentado, cujos olhos faziam menção de cerrarem-se e cujo rosto também insinuava um sorriso; e, no seu resumo, aquela pequenina figura era o próprio semblante da felicidade.
Ele não entendia a dinâmica responsável pelos fluxos de visitantes naquele parque, tampouco a relação que mantinham com os horários determinados para abertura dos portões do jardim. Sabe-se que o Palácio do Catete abre a entrada lateral do jardim na Praia do Flamengo nos dias de semana, das oito às dezoito horas, mas não se sabe se estes horários são os melhores. Quando se abria a entrada lateral na face do terreno voltada para a Praia do Flamengo, o parque se transformava em passagem para os transeuntes do bairro, que agora podiam escolher se iriam por uma das duas ruas adjacentes – Ferreira Viana ou Silveira Martins, ou por dentro do jardim. Se não estivesse trabalhando, fazendo as entregas na bicicleta, sempre escolhia o jardim: era melhor. Como o passeio da praia.
O tempo passou a ser percebido de maneira diferente desde que se mudou para o Rio de Janeiro; agravou-se a mudança com o emprego noturno. Em sete anos, era a segunda vez que caminhava pelas ruas do Catete numa manhã de sábado na condição de trabalhador diurno. Muito difícil se adaptar à nova vida. Agora podia compreender os jogadores de futebol quando disputavam partidas em outros países - sempre reclamando do fuso horário.
Mas não houve outro jeito, seu dia tinha chegado. Os passeios noturnos na bicicleta e as noites de vigília à porta da farmácia logo seriam lembrança distante. Naquele momento, porém, não percebeu que a cidade vivida assim de madrugadas fora a razão de sua existência e paixão nos últimos anos, a mais convincente para mantê-lo ali. Agora, haveria de aprender tudo outra vez.
O grande problema era saber o que fazer com os R$254,02 a mais que passaria a receber como balconista. Com o salário anterior, sobravam-lhe em média, depois de acertadas todas as despesas mensais, cerca de R$40,00, os quais nunca eram guardados. O primeiro pagamento, cuja data já se aproximava, era justo que fosse usado para comprar um colchão novo. Não dava mais para seguir dormindo no atual, um colchonete que se fosse gente seria a pessoa mais carinhosa do mundo, pois usava a espuma macia e o forro puído e áspero para envolver seu hóspede num abraço verdadeiramente intenso, morno, infernal.
Poderia também mandar para casa o dinheiro, ligar para mãe e dizer para ela comprar o conjunto estofado que anunciaram na televisão – sofás de dois e três lugares, verdes, bonitos, com encostos que vão até a altura da cabeça e braços redondos. Parece que inauguraram uma loja dessas em Santana. Se eles entregam em outra cidade, dá para comprar.
Estava à sombra das amendoeiras à beira dos campos de futebol, de onde podia sentir o cheiro de peixe frito do Lourival. Estava em jejum e sentiu-se tentado a comer, mas era ainda muito cedo para almoçar. Além do mais, não encontrou ninguém que conhecia em nenhum dos campos e também não queria mesmo saber de futebol àquela hora. Sentia-se um pouco irritado e saiu dali quando dois homens começaram a discutir por causa de uma bola saída pela lateral.
Caminhava agora pela sempre deserta calçada da Praia, do lado do Parque do Flamengo, sem saber que acabava escolhendo aquele lado da rua porque exatamente ali sopra uma brisa constante, muito leve, sempre na direção do rosto do transeunte, independentemente da direção em que se esteja a caminhar. Os homens continuaram os insultos, ouvidos cada vez mais ao longe.
Chegou diante do castelinho do Flamengo e resolveu atravessar a rua para entrar pela Dois de Dezembro. Resolvera passar diante daquele prédio novo que haviam construído lá – parece que é um museu. Hoje, haveria de entrar. Não pôde, estava fechado. Como sempre. Por algum motivo, aquele lugar estava sempre fechado. Eram vinte para as onze da manhã. De noite, sempre via as luzes em néon lilás, formando um desenho curioso nas paredes daquele edifício. Na porta, um telão bonito, em cujas mensagens nunca tinha prestado sequer atenção. Eram muitas imagens. O tempo todo. E tudo é mais rápido de bicicleta.
Já de volta à Rua do Catete, viu, de longe, a feira tomando a rua lateral à praça. Entrou na pizzaria – vazia, àquela hora - ao lado do cinema. Procurou no balcão sua amiga, e foi surpreendido por uns beliscões nas costas de um jeito que ela fazia e que ele odiava. Ela já estava sorrindo e perguntou porque ele não tinha ido ontem à noite com eles.
Rindo, meio desajeitado, ele quis desconversar, porque na verdade queria ter ido e não pensou em nenhuma desculpa para dar. Eles chegaram até à porta da pizzaria e, neste instante, ele olhou a fonte no centro do Largo do Machado e viu que ela estava funcionando. O sol batia na água esguichada, formando uma admirável cortina branca e brilhante. A fonte parecia alta e limpa. Os dois se detiveram alguns instantes o olhar. As pessoas pareciam parar e notar que havia algo diferente na praça naquela manhã, mas ninguém pôde perceber exatamente o quê.
- Porra, nunca vi esse chafariz funcionando, disse ele.
- É mesmo, rapaz, acho que eu também nunca vi...
***
A infiltração na parede cinza surgia do teto e pingava direto do teto num pano-de-chão, numa freqüência que fazia sua substituição necessária a cada três dias. O restante da água escorria pela parede até a caixa de aço da mangueira contra incêndios, formando um caminho de limo marrom escuro e infiltrava-se em outro lugar. Devia o limo tão entediante coloração à pouquíssima luz que recebia da janela do final do corredor; embora no décimo primeiro andar, fazia mais de trinta anos os fundos do edifício na Marechal Floriano fora encoberto pela construção de um centro empresarial mais alto, onde funciona hoje uma universidade particular.
Na sala 1106 funciona a SAEP – Seção de Administração de Espaços Públicos, da Fundação de Águas do Município. Antigamente, um mesmo órgão municipal era responsável pelos serviços de iluminação, limpeza, manutenção e reparo das ruas e logradouros públicos da cidade do Rio de Janeiro. Diferentes governos foram paulatinamente dividindo os órgãos na tentativa melhorar a prestação dos serviços. Para cuidar das praças e da vegetação na área urbana, foi criada, por exemplo, a Fundação Parques e Jardins.
O caso específico da SAEP foi resultado de uma destas inúmeras reestruturações. Nela trabalha José Roberto Couzinho, supervisor da seção, que acaba de sair da sala 1106 e chegar diante dos elevadores. Pega um copo plástico, sustenta-o colado à torneirinha de água gelada, quando sente uma presença forte. Ele vira bruscamente, a boca do copo prende-se à torneirinha e o copo rasga-se derramando seu conteúdo parte no chão, parte em suas calças marrons de microfibra e outra parte nos sapatos de couro.
Parada diante de Couzinho, impassível, está Elluane, uma preta cheirosa. Ela se afasta um passo e espera a reação do homem. Couzinho sorri mostrando dentes amarelos e a gengiva superior cinzenta, sacode um pé, depois o outro e bate as mãos nas calças de microfibra.
- Estes copinhos são muito frágeis. Outro dia um estourou na minha mão.
Continua sorrindo e mostrando a gengiva e batendo a água das roupas. Ela faz que sim com a cabeça e diz:
- É.
Malditos sonhos. Por que estes sonhos? Couzinho sonha com aquela preta sempre, sonhos que trazem uma inquietação e raramente alegria. Fica mais inquieto quando não sonha. Bem antes de ir dormir, com freqüência, pensa se vai sonhar com ela. Nos sonhos, ela não é cheirosa; não tem cheiro, mas sorri – só não pode saber se é sorriso complacente ou simples deboche. Pretos bonitos sentem escárnio por brancos medíocres, mas é sem querer.
Elluane se desviou da poça d’água formada no chão e desceu pelas escadas. A moça não sabe que Couzinho sonha com ela quase todas as noites. Também ignora seu nome e o que faz naquele prédio com as calças de microfibra e os sapatos de couro. Naquela hora, antes de encontrar Couzinho derramando água no corredor, pensava na viagem de volta que faria com o enorme urso de pelúcia que comprara para presentear a sobrinha Jackeline. Depois lembrou da revista de notícias dos artistas que tinha deixado com a secretária, no sétimo andar, e desceu as escadas.
Couzinho na verdade se preparava para avisar o agente administrativo Júlio de que o chafariz do Largo do Machado deveria funcionar nos próximos quinze dias, conforme ofício encaminhado pela Secretaria de Esportes da Prefeitura. Ele sabia que Júlio iria criar caso, já havia tido problemas com ele. Um mal-humorado, estúpido. E ainda essas piadinhas com o sobrenome – “seu Couzinho” –; o idiota não sabe como são os portugueses.
Chegou na sala 1112 e disse:
- Júlio, você sabe que nos próximos dias a cidade vai receber este evento aí e recebemos um ofício da Secretaria de Esportes solicitando o funcionamento dos chafarizes da cidade e falta ligar o do Largo do Machado e como fica na sua região administrativa eu gostaria que você providenciasse isso, por favor.
Para surpresa de Couzinho, que jurava que o babaca do Júlio ia inventar alguma coisa grosseira ou ia fazer piadinha, ele respondeu com calma:
- Seu Couzinho, já estava sabendo deste ofício e já providenciei o funcionamento de todos os chafarizes relacionados na minha região. Mas o Largo do Machado pertence à Região 4, cujos bairros são Catete, Laranjeiras, Glória e Lapa. Não sou eu quem cuida da Região 4.
- E quem é que cuida?
- Não sei.
Couzinho ficou de pé parado, olhando para Júlio, pensando em quem seria o responsável pela Região 4. Júlio já olhava a tela do computador.
- Seu Couzinho, parece que quem cuida da Região 4 é seu Ezequiel, mas ele não costuma vir aqui.
Ele voltou a cabeça e viu que quem falava era a colega de sala de Júlio, dona Rosane, que prosseguiu:
- Parece que o sobrinho dele é um menino que trabalha na limpeza do prédio aí da faculdade. Acho que eles moram num morro na Gamboa, não sei.
- Gamboa?
***
Na birosca da Rua 2 do Morro dos Prazeres, chamam Ezequiel Teles dos Anjos ao telefone.
- Disseram que é do serviço do senhor, seu Ezequiel.
Um senhor de pele marrom, bigode grisalho como os cabelos crespos sob o chapéu, vestindo bermudas e calçando chinelos pega no aparelho e ouve. Desliga o telefone.
- Puta que pariu! Sabia que ia sobrar para mim esta merda de evento na cidade.
A um beija-flor.
Rio de Janeiro, agosto de 2007
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