domingo, 28 de junho de 2009

Sobre a morte do Michael Jackson


Michael Jackson não está mais entre nós. Curioso afirmar isto sobre alguém que nunca esteve entre a absoluta maioria das pessoas que o conheciam, muito embora fosse conhecido de praticamente todos.
Senti duas coisas a respeito do fato: a primeira, é que, no dia seguinte, as pessoas deveriam ter dançado. De manhã, no trabalho, no ônibus, sozinhas ou em público, poderiam ter aproveitado e soltado uma dançadinha a la Michael Jackson. Afinal, isso era a coisa mais legal que esse cara fazia.
A segunda: toda esta história de superexposição, supermidiatização, espetacularização extrema da existência de alguém vive um interessante capítulo, que dificilmente será o derradeiro, embora tenha sido o último da vida de Michael Jackson: a superrepetição de uma mesma informação elevada a todas as potências. As execuções da mesma peça informativa - uma imagem, uma música, um discurso - estão acontecendo aos milhões, a todo instante. A morte dele está, paradoxalmente, sendo onipresente.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Travessia


"Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a história acaba".



Atravessei. Foram alguns meses, amor e ódio, muitos espinhos, dureza, flores, brisas, sóis e chuvas. Grande sertão: veredas é. A arte acontece em forma de prosa: caminhei léguas pelos Gerais, comi nacos de carne seca, mastiguei punhados de farinha e rapadura, cavalguei, entrei em batalhas mortais sob fogo de rifles e combléns. À noite, à beira do fogo, o jagunço Riobaldo - Tatarana, Urutú-Branco - conta histórias de Quipes, Alaripe, Jõe Bexiguento, sobredito o "Alpercatas", Pacamã-de-Presas, Acauã, Fafafa e Paspe. Ele fala de Reinaldo, "Diadorim".

Desfecha sublime.

Na travessia, colhem-se flores:

"Moço: toda saudade é uma espécie de velhice".
"O amor, já de si, é algum arrependimento".
"Ficar calado é que é falar nos mortos".
"Tempo é a vida da morte: imperfeição".


Transcrições Noturnas #204



"Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses - Davidão era o nome dele. Vai, um dia, dessas coisas que às vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de réis, mas em lei de caborje - invisível no sobrenatural - chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver? Para nenhum deles tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, O Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...

Apreciei demais esta continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros movimentos, sem os volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? quem sei. Soube somente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem - deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e visse morar perto dele, sempre. Mais deles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso..."


Grande sertão: veredas. João Guimarães Rosa



ca.bor.je sm 1 Feitiçaria, feitiço, mandinga. 2 Força oculta protetora do valente. 3 Pacto com o diabo. 4 Saquinho que encerra uma oração escrita e se pendura ao pescoço. 5 gír Azar. 6 Peixe de pântano. 7 pop (Nordeste) Mulher da vida.

as tantas partes



Epílogo:

E quando se lançou portão afora, teve a impressão de haver menos gente na rua, para o que esperava naquele feriado doce de sua mãe. Mas, notando bem, não era a quantidade de pessoas o que se desenhava atípico, e sim o ritmo delas, e também das demais coisas, que parecia lento, calmo. A luz lhes incidia alheia, e delas saía um silêncio.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

autoretrato de casa


as tantas partes


Parte 3:


Linha natural que rege o corpo
Em suas todas partes
Se tem as vidas delas sempre
Dão a mim a vida
A cada vez
Que as põe sentadas na cama
Nuas

Belas com seus cabelos sobre os pescoços
E seus pescoços sob seus cabelos soltos

Vidas, magras, cinturas e
bocas cheias de dentes
Também mármores

Mármores das colunas
Colunas que bem não vejo
Pois bocas, cabelos, cinturas

E beijos

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Assum Preto

Luiz Gonzaga


Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor

Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió

Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá

Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.


as tantas partes

Parte 2:


Quando recebo outra vez o livro
Desconheço aquele que o havia ganho
Como desconheço aquele que o recebe de volta
E desconheço o próprio livro que ganhara,
Que lera,
Quiçá era o mesmo que emprestara
Ou este agora, devolvido, tomado de volta

Não reconheço o arco de tempo
Que me lançara ali

E, parado nas escadas do edifício vizinho
Vizinho ao edifício vizinho
Leio a primeira linha do primeiro parágrafo
O arco do tempo me faz novamente
E ao livro, ao que o ganhara,
Ao que o lera, ao que o emprestara,
Ao que novamente o recebia
E até ao edifício vizinho


Reconheço a todos

sexta-feira, 19 de junho de 2009

as tantas partes

Parte 1:


A vontade antiga de moço
A vontade de dezesseis anos
Não se sabe em parte se guardou
Ou mesmo se foi guardada em parte
Alguma, alguma parte

Nem como lida com o desejo o tempo
A lida do tempo
Pondo longe os desejos
À lida do tempo
Arando sonhos em pedaços

carol menina

Ela faz festa.
Um coco, um pé de sapato de couro e rosas, à Santa do Mar numa baía suja. Bobagem de beleza a ninguém representar. Minha vista suja de etnias e descredos é o através de onde se afixam as leituras no mosaico típico. Roubam-me as idéias e lá se vai o meu vigor ante o despir diabólico de um anjo belo. Ela também vê a sujeira e continua lisa, branca e doce radical. E o pé ferido vai para seu mosaico típico, diferente do meu. Ela é todas as meninas e todas as meninas seriam felizes com ela. Ela é menina. Nem sempre ondula feito elas, mas as guarda todas elas.
Um mundo de águas traz por terra as meninas do norte. E um país que eu e ela queremos costurar se parte em dialetos pobres. Ela não quer escrever e tem preguiça. Sem pudor e razão, teima. E ri-se. E volta. Bebe água no mundo de águas. Eu penso se ajudaria ser ela porque se ela guarda todas as meninas eu as entenderia melhor. Elas me confundiriam menos e talvez não fossem o que me parecem ser. Ela ganha poesias e mas não entende porque as outras meninas não as ganham. E ri-se.
No tempo em que os mendigos têm no olhar ainda mais convicção de sua dignidade, a cidade se contorce. E a gente, nós e toda a gente, mais nós do que a gente, passeamos. Mas ela não é melhor que as outras meninas e todas as meninas são meninas, são ela.

Ela é menina.

domingo, 14 de junho de 2009

Verões



Sentada, calou-se.

Buscou primeiro a imagem
De um tempo que lhe faltava
A imagem, para ela, bela,
De tudo que considerava pronto,
Construído, realizado.
Vasculhou sem calma e medo
O jardim de caminhadas em contentamento
E rasgou-se em tudo que quis, fez e tentou

Pôs fim ao trabalho de despedaçar a sorte,
Julgando ter sua própria sorte
O pior dos destinos
Refletiu-se opacamente
Em memória deste tempo,
Este tempo que não lhe pertencia mais.

Espalhou sobre as camas da lembrança
Todas as noites de prazeres cálidos,
Sentindo os odores do amor antigo.
E simplesmente não tocou nas mágoas
As olhou, viu a janela,
E deixou jogos, ardis, ressentimentos amiúde
Onde jaziam. Na poeira.

Posta do avesso, apanhou do chão
Os vestígios de algo que sonhou
E pôde somente atirá-los a um canto
No absurdo desespero, gracejou com o Fim.

Então,
Recolheu os estilhaços de quem um dia julgara ter sido
e saiu.

Era verão.



Março de 2007.

Performance

terça-feira, 9 de junho de 2009

Dziga Vertov

Synthesis

Não sabia, mas era aquela a centésima quadragésima mulher com quem estava saindo, e a quadragésima terceira com quem estava prestes a dormir. Vivia uma noite em que seu espírito discutira com sua consciência – tudo parecia impossível e aquela mulher era parte disso. Tinha os traços da moça que fora seu primeiro amor, aos dezessete anos. Mas mostrava também os traços de todas as outras que ele desejou – das que pôde ter ou não – e daquelas com as quais viveu instantes e construiu lembranças. Tinha a risada longínqua de uma loira suave com quem compartilhou solidão febril; as mãos pequenas de uma outra, de tal maneira que as mãos das moças de mãos grandes também podiam estar ali, naquelas pequenas.
Sorriu, sorriu muito, falando àquela mulher como se se dirigisse a todas as outras de suas memórias. Sentiu vontade e amarrotou as roupas dela contra as suas, terminando por também amarrotar os papéis onde se achavam escritas aquelas memórias. Contou de seus projetos pouco íntimos e incitava a si mesmo a se despojar da vaidade, embora estivesse atravessado pela impressão de não servir de nada falar dos planos – nem dos íntimos nem dos alheios, nem de suas suspeitas e tampouco de suas convicções.
20/10/2007
(Levemente inspirado no Amor nos Tempos do Cólera - linhas colombianas.)