sábado, 25 de julho de 2009

Na parede da memória




Belchior.

É a primeira vez que este nome aparece aqui. Talvez Belchior esteja bem guardado. Há algumas coisas que mantemos bem guardadas.

Outro dia, em casa numa reunião de amigos, um cara falou do Belchior. Senti, primeiro, como se ele tivesse tomado um atalho e conquistado subitamente a minha simpatia. Pensei assim: se este cara cita o Belchior numa roda de amigos, ele deve ser legal. Uma vez, conhecemos um cara que disse ter citado um dos belos versos da canção "A Palo Seco" na epígrafe de sua tese de doutorado e passamos a chamá-lo de Deus.

Mas o que mais senti mesmo foi como se ele tivesse entrado num quarto que fica escondido dentro do meu peito, e visto uma coisa querida que deixo por lá.


Eu gosto de Belchior. O Fusca que tivemos Pedro, Rômulo e eu foi batizado Belchior. O Fusca era amarelo, brilhava como o sol. Era bonito. O cara citou do Belchior uma música que eu não conhecia, intitulada “Ame seu vizinho mesmo que ele seja jovem”.

Ao ouvir o nome da música, senti que talvez eu mesmo tenha reencontrado o quarto escondido, e me sentido surpreso com o que encontrara lá. Depois da surpresa, a alegria de reconhecer os motivos, espalhados pelo chão, de gostar daquilo que gostava já.

Não encontrei a letra da música para colocar aqui.

Van Gogh em seu lençol






Quero ver o Vermeer. Ver o Giacometti. Rembrandt. Chirico. Warhol. Pollock. Hopper. Picasso. Monet. Rubens. Dalí. Não verei nenhum deles: verei suas almas em molduras, telas, estátuas e luz. E verei as minhas almas. Van Gogh lá, eu cá, olhando almas e lençóis.











Citações involuntárias #01


"O princípio do cinema: ir até à luz e apontá-la para nossa noite".

Jean-Luc Godard

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Transcrições Noturnas #04


No dia seguinte ao da reunião, a febre deu mais um pequeno salto. Chegou até os jornais, se bem que de uma forma benigna, já que se contentaram em fazer algumas alusões. No outro dia, em todo caso, Rieux podia ler pequenos cartazes brancos que a Prefeitura mandara rapidamente colar nos lugares mais discretos da cidade. Era difícil tirar desses cartazes a prova de que as autoridades encaravam a situação de frente. As medidas não eram draconianas e parecia ter-se sacrificado muito ao desejo de não inquietar a opinião pública. O decreto dizia, na verdade, que tinham aparecido na comuna de Oran alguns casos de uma febre perniciosa que não se podia ainda caracterizar como contagiosa. Esse casos não eram bastante característicos para serem realmente inquietantes e não havia dúvida de que a população saberia manter o sangue-frio. Contudo, e com um espírito de prudência que poderia ser compreendido por todos, o prefeito tomava algumas medidas preventivas. Compreendidas e aplicadas como deviam sê-lo, essas medidas eram de natureza a debelar qualquer ameaça de epidemia. Consequentemente, o prefeito não duvidava por um só instante de que os seus administrados dariam a mais dedicada colaboração ao seu esforço pessoal.

Trecho de A Peste. Albert Camus.

Cena de cinema


quinta-feira, 16 de julho de 2009

Dois nomes

Fenêtre
Être


Janela
Ela





Pour Mlle. Duarte

biologia para vestibular

pneumococcia
substantivo feminino
Rubrica: pneumologia.
infecção devida ao pneumococo ou Streptococcus pneumoniae, bactéria Gram-positiva, esp. virulenta e patogênica


Streptococcus pneumoniae

A Rua do Russel


A Rua do Russel fica na Glória.
Quando resolvi falar sobre este lugar, pensei até em pesquisar o motivo pelo qual a rua ganhou este nome. Para isso, naturalmente, me serviria do Google num ágil rua+do+russel+rio+de+janeiro+história, que provavelmente me retornaria uma história convincente, com a que me contentaria em publicar. Para quem se interessar, segue um link útil: Google.
Decidi usar somente as informações que já possuía sobre a Rua do Russel, entre as quais a primeira, escrita acima, sobre o bairro onde se situa. Não sei ao certo onde ela começa: se na esquina da praça que acompanha o seu contorno e a Avenida Beira Mar, ou se todo o trajeto que vai do Hotel Glória, passando pelo velho prédio da Manchete, até o Hotel Novo Mundo, já próximo do Museu da República, também é Rua do Russel. Gosto mais desta segunda opção, pois todo o trecho é bonito.
Acho que sei onde ela termina, contudo: junto aos muros do Outeiro da Glória, lançando sua melancolia no caos de um cruzamento perto do Largo da Glória. O Outeiro prescinde de comentários. Só de olhar aquela igreja branca, seus edifícios anexos, árvores e paredões de pedra, já dá vontade de subir lá.
Uma vez eu vi o Outeiro de um ângulo muito legal. Mas numa situação inusitada: o padrasto de uma de minhas primeiras namoradas era dono de motel. Ele era de família espanhola que tinha a tradição no ramo das atividades “moteleiras”. Um belo dia, fui com minha namorada visitar o trabalho de seu padrasto. Ele nos mostrou as suítes simples, as suítes temáticas, a suíte principal que, além de mini-system e piscina, tinha teto retrátil. Eu vi funcionar o mecanismo do teto retrátil, foi bacana. Hoje entendo porque conseguimos visitar a maioria dos quartos na mesma hora. Era no final de um dia de semana, o motel ainda não começara a receber seus visitantes. Passamos ao telhado do prédio (lá dava para ver o teto retrátil de cima). Era uma bela vista do Outeiro, e de toda Marina da Glória e do aterro, naquele entardecer.
Acho que naquela época eu já gostava da Rua do Russel. Reparava na balaustrada de defronte ao Hotel Glória e ficava imaginando quando o mar ia até ali. Ficava imaginando o passeio sob as luzes dos postes em forma de mulher.
Construíram um museu, com cinema e tudo, na praça que é ladeada internamente pela Rua do Russel. Lá é cheio de estátuas, tem uma estátua gigante de São Sebastião, um busto gigante do Getúlio Vargas, em memória de quem foi erguido o museu, e um ou outro busto que não é gigante.



Na Rua do Russel, tem um plano inclinado, para levar ao Outeiro. Ao lado do plano inclinado, fica um dos prédios de apartamentos mais bonitos do Rio.
Parece que logo ali, fica a redação da revista Piauí. Eu nunca li a Piauí. Escuto seus anúncios engraçadinhos no rádio. Uma vez, na casa de alguém, estive com um exemplar nas mãos. Menos do que o formato estranho da publicação, acho não consegui ler mesmo é porque não gosto de ler revistas. As revistas me trazem a impressão de estar lendo alguma coisa velha, já defasada, e, portanto, inútil. Mesmo quando se trata da última edição, sinto que é desperdício de tempo ler aquilo, uma vez que, na semana ou mês seguinte, haverá a mesma quantidade de artigos, notícias e reportagens para se ler outra vez.
Um raciocínio que não faz nenhum sentido, porque perco muito mais tempo lendo romances que foram escritos há décadas, há mais um século, do que perco com as revistas, e não considero isso desperdício de tempo. Se fosse um raciocínio, não faria nenhum sentido. Mas não é raciocínio.
Na Rua do Russel, tem um bucólico estúdio de fotografia que é um dos poucos do Rio que ainda revelam filmes preto e branco. O dono do lugar é o Milán, um velho com jeito de russo, a quem eu nunca vi sem um cigarro na mão. Também não me lembro de ter estado lá sem que o ouvisse falar algo a respeito de bebidas alcoólicas. Outro dia, ofereci para deixar um sinal pelo serviço, ao que ele me respondeu: “se quiser deixar melhor, que eu já bebo um uísque”. Hoje, brincou com um cliente com quem conversava, antes de me atender: “eu estava crente que tu ia pagar uma cerveja, porra!” Não é fácil escutar o que ele diz, pois tem uma voz rouca, bem fraquinha, conseqüência provável da ação dos cigarros e das bebidas alcoólicas em seu organismo.
Então me atendeu. Anotou o preço da revelação de um rolo no envelope pardo e viu que eu estendia uma nota de R$20. Riscou o preço e escreveu “pago”. Foi quando vi que o valor era menor do que tinha pago da última vez, e lembrei de pedir para colocarem os negativos revelados num plástico para arquivar, pelo que eles cobram um valor a mais. Ele então disse:
- Você quer com print file?
- Sim. Quanto fica?
Ele já escrevia no envelope R$2 a mais, “pago”. E eu perguntei:
- Com print file é mais R$2?
- Acho que é mais de R$2, mas que se foda.
E, meio impaciente, me cobrou R$2.
Fiquei pensando que Milán é um bom empresário. Ele tem os clientes certos. Ele não dá a mínima para bobagens hipócritas politicamente corretas, fuma dentro de seu estabelecimento, fala palavrões. Não se importa com os mandamentos de uma ou de outra doutrina de gestão de negócios ou de estratégia de marketing que pretensamente se preocupa com as pessoas, “que coloca o cliente em primeiro lugar”. Doutrinas essas que simplesmente tentam achar um meio de vender alguma coisa a alguém, e que contribuem grandemente para transformar o mundo num lugar mais escroto.
Ele me cobrou a menos, eu teria pago a mais. O cliente do Milán saiu satisfeito com o atendimento, deixando para trás o estúdio fotográfico da Rua do Russel, e logo sua praça, as estátuas, o plano inclinado, o prédio de apartamentos, o prédio da redação da revista, o Outeiro com seus paredões de pedra, naquela tarde de sol entre nuvens.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Transcrições noturnas #178






O Velho está olhando os prédios, muito compenetrado, encostado na grade de ferro que cerca o antigo Buraco do Lume, que depois de tapado virou um gramado com poucas árvores, onde moram alguns mendigos.
“Teu arroz já chegou”, diz Augusto.
“Está vendo aquela sacada ali, daquele sobrado pintado de azul? As três janelas do primeiro andar? Foi naquela janela à nossa direita que eu a vi pela primeira vez, debruçada no balcão, os cotovelos apoiados numa almofadinha com bordados vermelhos.”
“O arroz já está na mesa. Ele tem que ser comido logo que sai do fogo.”
Augusto puxa o Velho pelo braço e entram no restaurante.
“Ela mancava de uma perna. Isso para mim não tinha importância. Mas para ela era importante.”
“É sempre assim”, diz Kelly.
“Você tem razão”, diz o Velho.
“Come o arroz, vai ficar frio.”
“As mulheres de vida airada são detentoras de uma sinuosa sabedoria. Você me deu um momentâneo conforto ao mencionar a inexorabilidade das coisas”, diz o Velho.
“Obrigada”, diz Kelly.
“Come o arroz, vai ficar frio.”
“Vai ser tudo derrubado”, diz o Velho.
“Antigamente era melhor?”, pergunta Augusto.
“Era.”
“Por quê?”
“Antigamente tinha menos gente e quase não havia automóveis.”
“Os cavalos, enchendo as ruas de bosta, deviam ser considerados uma praga igual aos carros de hoje”, diz Augusto.
“E as pessoas, antigamente, eram menos estúpidas”, continua o Velho, com um olhar triste, “e tinham menos pressa.”
“O pessoal da antiga era mais inocente”, diz Kelly.
“Era mais esperançoso. A esperança é uma espécie de libertação”, diz o Velho.




Trecho de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In: Romance Negro e Outras Histórias. Rubem Fonseca.



sábado, 11 de julho de 2009

penso


penso na ciranda do dia-a-dia penso na poesia calma das linhas retas do mar penso no terror e na dor penso na beleza de minh’alma penso nas bonitas palavras penso na corrente que prende penso na água que é fresca e corrente penso em correnteza penso em merthiolate penso no que há penso inutilmente penso na garrafa plástica penso em felicidade penso infelicidade penso em solavancos mórbidos e em sonhos doces penso em olhos grandes penso em cuecas samba-canção penso no futuro do rádio de válvulas penso na esquina do velho rádio velho de válvulas penso em caboclo penso em sujeito e predicado penso em texto justificado penso em justificativa penso entre fones de ouvido penso em risada de homem limpando a piscina penso em toda gente se favorecendo e em árvore florescendo penso em gosto de amido e em laboratório de química penso repetidamente penso em figurinhas amassadas penso no México penso que não estive lá penso que sem ter estado não posso pensar penso em estado paralelo penso em redondeza penso em miolo e em sabiá-canção penso em canetas rabiscando a tela penso sutilmente em sutileza penso em gelatina pura penso em mandarim e penso em português pois em mandarim não penso em poesia concreta penso porque penso em abstrato denso penso

Nara Leão não é só bossa-nova



"Meu nome é Nara Monteiro Leão. Nasci em Vitória, mas sempre vivi em Copacabana. Não acho que só porque vivo em Copacabana, só possa cantar determinado estilo de música, mas é mais ou menos isso: quero cantar qualquer tipo de música que ajude a gente a ser mais brasileiro, que faça todo mundo ser mais livre, que ensine a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado".


Extraído do disco Show Opinião, de Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti

sábado, 4 de julho de 2009

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Azul e branco

Concha e cavalo-marinho
Mote de Pedro Nava


I


Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio
Do espaço criado.

Concha e cavalo-marinho.

O mar vos deu em corola
O céu vos imantou
Mas a luz refez o equilíbrio.

Concha e cavalo-marinho.

Vênus anadiômena
Multípede e alada
Os seios azuis
Dando leite à tarde
Viu-vos Eupalinos
No espelho convexo
Da gota que o orvalho
Escorreu da noite
Nos lábios da aurora.

Concha e cavalo-marinho.

Pálpebras cerradas
Ao poder violeta
Sombras projetadas
Em mansuetude
Sublime colóquio
Da forma com a eternidade.

Concha e cavalo-marinho.



II


Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.

Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.

Concha e cavalo-marinho.

Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos
Que o raio de luz
Cortando transforma
Em claves de sol
E o amor do infinito
Retifica em hastes
Antenas paralelas
Propícias à eterna
Incursão da música.

Concha e cavalo-marinho.



III


Azul... Azul...

Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco

Concha...

e cavalo-marinho.


Vinícius de Moraes








A colaboração do texto foi de Pedro David, numa manhã de sábado.

quarta-feira, 1 de julho de 2009